CRITICA E PERCEPÇÃO
Jonh Dewey
(Arte como Experiência.
Ed. Martins Fontes, 2010)
Crítica é juízo, tanto idealmente quanto em termos
etimológicos. Compreender o juízo, portanto, é a primeira condição para uma
teoria sobre a natureza da crítica. As percepções fornecem ao julgamento seu
material, quer ele diga respeito à natureza física, à política ou à biografia.
O conteúdo da percepção é a única coisa
que faz diferença nos juízos subsequentes. Visto que a matéria da crítica
estética é percepção dos objetos estéticos, ela é sempre determinada pela
qualidade da percepção direta; a obtusidade na percepção nunca pode ser
compensada por nenhum volume de conhecimentos, por mais vastos que sejam, nem
pelo domínio de teorias abstratas, seja qual for a sua correção.
Pensa-se, comumente, na crítica como se sua tarefa
não fosse a explicação do conteúdo de um objeto, em termos da substância e da
forma, e sim um processo de absolvição ou condenação com base em méritos e
deméritos. Grande parte desta crítica de tipo judicativo provém de uma
desconfiança subconsciente que o indivíduo tem de si mesmo e do consequente
apelo à autoridade em busca de proteção. A percepção é obstruída e abreviada
pela lembrança de uma norma influente e pela substituição da experiência direta
pelo precedente e pelo prestígio. O desejo de uma posição de autoridade leva o
crítico a falar como se fosse o defensor de princípios estabelecidos, com uma
soberania inquestionável. Infelizmente, tais atividades contaminaram a própria
concepção de crítica.
Talvez esta situação se deva ao fato de que o
julgamento definitivo, aquele que resolve uma questão, é mais compatível com a
impenitente natureza humana do que o juízo que constitui o desenvolvimento
reflexivo de uma percepção reconhecida a fundo. A experiência satisfatória
original não é fácil de obter, sua conquista é um teste da sensibilidade inata
e da experiência amadurecida através de amplos contatos. O juízo, como ato de
investigação controlada, exige uma formação rica e uma visão disciplinada. É
muito mais fácil “dizer” às pessoas em que elas devem acreditar do que
discriminar e unir. E a plateia que, por sua vez, está habituada a receber
ordens, em vez de ser ensinada a usar o pensamento para indagar, gosta de
receber ordens.
Todo profissional está sujeito à influência dos
costumes e da inércia, e tem de se proteger dessas influências através de uma
receptividade intencional à própria vida. O crítico judicativo erige em
princípio e norma justamente as coisas que constituem os perigos de seu ofício.
A desastrada inépcia de boa parte da chamada crítica judicativa provocou uma reação
que tendeu para o extremo oposto. Com efeito, se não em palavras, ela
constituiu uma negação de que a crítica, no sentido do juízo, fosse possível, e
uma asserção de que o julgamento devia ser substituído pela afirmação das
reações a sentimento e imagens provocadas pelo objeto artístico. Mas não
decorre daí que a crítica objetiva da arte seja impossível, nem porque o
crítico possa perder-se em irrelevâncias e ditos arbitrários nem pela
inexistência de um objeto externo uniforme e publicamente determinado.
O crítico, em virtude do elemento de risco,
revela-se em suas críticas, mas se for cauteloso, emitirá seu juízo sobre o
objeto de um modo que seja um resumo do resultado de seu exame objetivo.
Perceberá que sua afirmação, ou avaliação, será testada por outras pessoas, em
uma interação perceptual direta com objeto. Sua crítica será como um documento
social e poderá ser verificada por outros a quem o mesmo material objetivo for
disponibilizado. Por isso, se o crítico for sensato, mesmo ao fazer pronunciamentos
sobre bom e ruim, de grande ou pequeno valor, dará mais ênfase aos traços
objetivos que respaldam seu juízo do que aos valores.
Se por um lado, não existem padrões para as obras
de arte nem, por conseguinte, para a crítica (do modo como existem padrões de
medida), existem, por outro lado, critérios de julgamento, para que a crítica
não caia no terreno do mero impressionismo. As discussões sobre a forma em
relação à matéria, do significado do veículo na arte e da natureza do objeto
expressivo proporcionam que se estabeleçam critérios. É importante lembrar que
critérios não são regras nem receitas. São o resultado de um esforço para
descobrir o que é uma obra como experiência, que tipo de experiência a
constitui. A crítica é um juízo, e o material de que brota o juízo é a obra, o
objeto, que entra na experiência do crítico, pela interação com sua
sensibilidade, seus conhecimentos e seu reservatório acumulado de experiências
passadas. Na medida em que suas conclusões sejam válidas, elas serão úteis como
instrumentos para a experiência pessoal, mas não como ditames sobre qual deve
ser a atitude de alguém.
Os critérios quanto ao seu conteúdo, variam
conforme o material concreto que os evoca e devem respalda-los, para que a
crítica seja pertinente e válida. Todavia os juízos tem uma forma comum, porque
todos tem certas funções a cumprir. Essas funções são a discriminação e a
unificação. O julgamento tem de evocar uma consciência mais clara das partes
componentes e descobrir com que coerência essas partes se relacionam na
formação do todo. A teoria dá os nomes de análise e síntese à execução dessas
funções. Elas não podem ser separadas uma da outra, porque a análise é a
revelação das partes como partes de um todo, de detalhes e particularidades
como pertencentes a uma situação total, a um universo de discurso. A
salvaguarda do crítico para desenvolver a análise é o interesse absorvente e
bem informado.
Para o crítico do campo da arte, o saber deve ser
o combustível do interesse caloroso. Esse interesse esclarecido significa a
familiaridade com a tradição de sua arte específica, uma familiaridade que é
mais que o conhecimento dela, uma vez que deriva da intimidade pessoal com os
objetos que formaram a tradição. Como não existe arte em que haja apenas uma tradição,
o crítico que não está intimamente familiarizado com uma variedade de tradições
é necessariamente limitado, e suas críticas serão parciais e distorcidas. Uma
vez que a forma sempre se integra com a matéria, o crítico apreciará a
multiplicidade de formas especiais que existe quando sua experiência for
genuinamente estética, e estará atento à identificação com uma forma ou técnica
que venha a preferir ao se deparar com um trabalho sem precedentes. O
conhecimento de uma vasta gama de tradições é uma precondição da discriminação
exata e rigorosa. E na maioria dos casos, a discriminação do crítico tem de ser
auxiliada pelo conhecimento do desenvolvimento do artista, tal como evidenciado
pela sucessão de seus trabalhos.
Há, então, uma fase unificadora e uma fase
discriminadora do juízo, a primeira tecnicamente conhecida como síntese,
distinta da análise. Essa fase unificadora, mais ainda do que a analítica, é
função da reação criativa do indivíduo que julga. É o lampejo de compreensão. É
nesse ponto que a própria crítica se transforma em arte. A análise, a
discriminação, deve resultar na unificação. Para ser uma manifestação do juízo,
ela deve distinguir as particularidades e as partes com respeito a seu peso e
função na formação de uma experiência integral. Sem um ponto de vista
unificador, baseado na forma objetiva de uma obra de arte, a crítica termina em
uma enumeração de detalhes. O que se pretende dizer é que o crítico deve captar
um fio ou tendência que esteja realmente presente, e expô-lo com clareza suficiente
para que o espectador tenha uma nova pista e orientação em sua experiência.
Vários modos de unificação por parte do crítico
são legítimos, desde que duas condições sejam atendidas. Uma delas é que o tema
e a concepção selecionados pelo interesse estejam realmente presentes na obra,
e a outra é a exibição concreta dessa condição suprema: é preciso mostrar que a
tese dominante é coerentemente mantida em todas as partes da obra. Desta forma
se evitam duas falácias da crítica estética, sejam o reducionismo e a confusão
de categorias. A falácia reducionista resulta da simplificação exagerada.
Existe quando um componente da obra de arte é isolado e o todo é reduzido aos
termos desse único elemento isolado, como, por exemplo, reduzir a obra
exclusivamente aos valores representativos. O mesmo princípio se aplica quando
a técnica é tomada para além da sua ligação com a forma. Um exemplo mais
específico encontra-se na crítica feita a partir de um ponto de vista
histórico, político ou econômico. Não há dúvida de que o meio cultural está
dentro e fora das obras de arte. Ele entra como componente genuíno, e
reconhece-lo como elemento é uma discriminação correta, mas não se trata de
reduzir as obras a documentos históricos. Observa-se um tipo mais extremado da falácia
reducionista quando as obras de arte são “explicadas” ou “interpretadas” com
base em fatores incidentais presentes nelas. Grande parte da chamada crítica
“psicanalítica” é dessa natureza.
A outra forma principal de prevalência desse tipo
de falácia reducionista é na chamada crítica sociológica. O conhecimento das
condições sociais da produção, quando de fato é um conhecimento, tem autêntico
valor, mas não substitui a compreensão do objeto em suas próprias qualidades e
relações. Somos assim levados à outra grande falácia do juízo estético, que
aliás se mistura à falácia reducionista: a confusão de categorias. Por exemplo,
existem categorias – isto é, concepções de controle da investigação – apropriadas
à história, e o resultado é apenas confusão quando elas são usadas para
controlar o estudo de uma arte que também tem ideias próprias. O que se aplica
à abordagem histórica se aplica às outras modalidades de tratamento. Dentre as
formas dessa falácia, a mais comum é supor que o artista parte de um material
que já tem status reconhecido, seja
ele moral, filosófico, histórico ou o que for, e o torna mais palatável usando
um tempero emocional e uma roupagem imaginativa. A obra de arte é tratada como
se fosse uma reedição de valores já correntes em outros campos da experiência.
Há uma profunda distinção entre o veículo de uma obra de arte – o portador
intelectual por cujo meio o artista recebe seu tema e o transmite a seu público
imediato – e a forma e a matéria de seu trabalho.
Dado que o propósito do objeto estético é a
acentuação da própria experiência direta, a arte usa o veículo adequado à
consecução desse objetivo. O equipamento necessário do crítico é, em primeiro
lugar, ter a experiência e, depois, fazer com que se revelem seus componentes em
termos do veículo usado. Para o crítico, a questão é a adequação da forma à
matéria, e não da presença ou ausência de uma forma particular. Há aqui um
problema o qual o artista e o crítico tem que enfrentar: a relação entre a
permanência e a mudança. A natureza e a vida não manifestam um fluxo, mas uma
continuidade, e a continuidade envolve forças e estruturas que perduram através
da mudança. O crítico que não for tão sensível aos sinais de mudança quanto ao
recorrente e ao duradouro usará o critério da tradição, sem compreender a
natureza dela, e recorrerá ao passado em busca de padrões e modelos, sem se dar
conta de que todo passado foi, um dia, o futuro iminente de seu passado, o
passado da mudança que o presente constitui.
Uma filosofia da experiência que seja agudamente
sensível às incontáveis interações que compõem o material da experiência é a
filosofia na qual o crítico poderá buscar inspiração. A função da crítica é
reeducar a percepção das obras de arte. A concepção de que sua tarefa é
avaliar, julgar no sentido jurídico e moral, bloqueia a percepção dos que são
influenciados pela crítica que assume esta tarefa. A função moral da crítica se
exerce de forma indireta. É o indivíduo que tem uma experiência ampliada e
intensificada que deve fazer sua avaliação por si mesmo. A maneira de ajuda-lo
é pela expansão de sua experiência de obra de arte, da qual a crítica é
subsidiária. Só se capta a plena significação de uma obra de arte ao se passar,
em nossos próprio processos vitais, pelos processos por que passou o artista na
produção de seu trabalho. É privilégio do crítico participar da promoção desse
processo ativo, e não impedi-lo a outrem.
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