quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Delírio & Vertigem


“Delírio & Vertigem”


Espetáculo teatral, 15ª montagem do Projeto Oficinão do Galpão Cine Horto/ BH/MG. O projeto consiste na realização de processos criativos e de experimentação sobre a arte da cena, desenvolvida no decorrer de um ano com apresentação do resultado para público. Esta edição comemora os quinze anos do projeto que recebe artistas de todo o país. Para a direção do trabalho foi convidada por seus coordenadores a atriz, diretora a professora de teatro Rita Clemente. Como parceiros, a diretora convidou Jô Bilac, dramaturgo, e a diretora de arte Luciana Buarque. Também esta edição marcou a interação entre os Núcleos de Pesquisa em Iluminação, Cenografia e Figurino, também desenvolvidos pelo Galpão Cine Horto.

Rita Clemente escreve no programa do espetáculo que baseou todo o processo de trabalho na perspectiva de criação de um espetáculo, que optou pela utilização de textos prontos, de modo a que a função de intérprete pudesse ser priorizada pelos participantes, de modo a traduzir o desejo de “atribuir novas perspectivas e fisionomias para a obra de um dos principais nomes da nova dramaturgia brasileira”.

Vê-se em cena atores jovens e talentosos, interessados em realizar a cena, em criar atmosferas e desenvolver suas habilidades. O espetáculo são dois: Delírio é de onde partiram, e Vertigem é para onde vão. Numa sucessão de cenas que se tangenciam levemente, os atores e atrizes se colocam corporal e oralmente, buscando revelar o que de humano e de inumano persiste nas relações entre pais, mães, irmãos, namorados, cônjuges e desconhecidos, reunidos em situações delirantes. A vertigem fica por conta da repetição de situações em tempos e com fisionomias diferentes, criando uma sensação de moto contínuo e de repetição da vida.

A direção se mostra clara, segura, todos caminham no sentido da teatralidade, como a possibilidade de mostrar a vida e as pessoas nas várias dimensões que a realidade pode revelar, quando vista sob o prisma da arte. As ações, tanto corporais quanto vocais, nos levam para aquele mundo surreal e ao mesmo tempo cotidiano, nos conduzem numa trajetória povoada de características humanas capazes de nos atormentar e surpreender, e de maneira doce e divertida. As palavras voam da cena para nossas percepções, desenhando ideias novas, mundos estranhos e questões sobre quem somos nós e porque agimos como agimos.

A dramaturgia é inteligente e perspicaz. Os diálogos são claros, diretos e poéticos. E tanto o trabalho dos atores quanto da direção, foram felizes na construção das ações vocais, que valorizam as palavras com entonações bem colocadas e com uma melodia delirante para a falação contínua dos personagens.

A atuação é limpa, econômica, viva. Cada um daqueles jovens se coloca em cena exteriorizando um prazer atraente aos nossos olhos espectadores. O estilo realista de atuação se desdobra num hiper-realismo, capaz mesmo de fazer emergir a teatralidade em pequenos gestos, caminhadas, quedas e pausas. O realismo, almeja que a humanidade dos personagens se mostre em sua plenitude e que a presença dos atores seja subsumida na nossa relação com a cena. O hiper-realismo, por outro lado, busca enfatizar os atos cotidianos de modo a que transpirem deles seus clichês e suas particularidades, valorizando-os e compondo com eles criaturas críveis e inusitadas. Vemos no “Delírio” os elementos de uma humanidade atual, de uma humanidade tresloucada por valores morais e afetivos construídos pela publicidade e pela tentativa de se tornar notícia. Na “Vertigem”, no entanto, a juventude do elenco ameniza esta humanidade louca, e o que poderia ser uma catarse, a assunção de um prazer e de uma angústia diante desta humanidade mediatizada, se dilui um tanto, sem contudo, nos deixar à deriva na atmosfera construída. Presenciamos momentos equilibrados de atuação em cena consciente, e que parece dar prazer a cada um dos atores e atrizes.

Os elementos plásticos do espetáculo completam essa atmosfera construída. As cores branco, preto, prata e verde metálico, mapeiam uma produção de roupas, sapatos, adereços e ambientes comuns na nossa atualidade, no entanto na combinação desenvolvida na cena, eles nos colocam diante de um mundo de texturas e ênfases hiper-realista. Delirante para o olhar, vertiginoso para o senso estético.

De fato, “Delírio & Vertigem” é bom teatro. Inteligente, questionador, divertido e revelador.   

terça-feira, 8 de janeiro de 2013



PROMETHEUS 
A Tragédia do Fogo 



 O espetáculo “Prometheus , a tragédia do fogo”, é uma trabalho da Cia. Teatro Balangan, surgida em 1999 e sediada em São Paulo. O grupo desenvolve uma trajetória de projetos e espetáculos teatrais fundada na experimentação e na formação continuada dos artistas participantes, numa primeira instância, e dos espectadores, numa segunda instância, conforme palavras do programa impresso da peça. 

 Esta montagem vem se desenvolvendo desde 2009, a partir de variadas fontes e inspirações e experimentações com plateia. Desde o segundo semestre de 2011 a atual versão vem se apresentando. Trata-se de uma mostra de um dos eixos da pesquisa desenvolvida pelo Grupo sobre o tema do inumano, que compõe o projeto “O Trágico e o Animal”, contemplado na 16ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Na elaboração do espetáculo interagiram: o aprendizado na incerteza, estrutura e escritura, tempo cronológico e mitológico, multiplicidade e simultaneidade, ainda segundo o programa impresso. 

 O Inumano é uma figura interessante que advém da filosofia. Como um elemento que faz parte da humanidade de cada um, a inumanidade é relacionada à infância e a um fundo esquecido de indizíveis na palavra dita. No espetáculo, ao nos depararmos com as sombras e as vozes que preenchem um espaço que não admite nossa presença, pois que somos dele separados por um fina parede de maleável tecido opaco, podemos tentar embarcar em memórias de sonhos e de noites escuras em nossa intimidade... mas também somos tomados por uma ansiedade de participar daquela celebração, que acontece atrás do tecido tão distante de nós, numa língua inacessível, e que parece não nos perceber presentes. Uma vivencia do indizível poderia ser provocada durante a abertura de “Prometheus”, mas a distância se faz mais imperativa que uma possível sensação de remetimento ao tempo imemorial, que rescinde de cada um de nós quando somos tomados por um ritual. O começo não nos começa, não nos ritualiza em conjunto com os celebrantes, nos colocando numa posição de apreciadores distanciados e sem direito a sermos iniciados àqueles mistérios. 

 A introdução da incerteza aparece como um elemento capaz de desencadear a emoção, no sentido de que somos convidados a nos movimentarmos e a tomar lugares que são escolhidos pelos atores celebrantes. Somos instados a nos envolver no estilo de relação direta com o espectador, que sugere um sistema de probabilidades, uma busca da consciência das probabilidades latentes na narrativa, que nos faz, como espectadores, arriscar previsões acerca dos subsequentes de um antecedente que não conhecemos. Sentados em volta do espaço no qual os atores se movem, em grupos acomodados de modos diferentes em cadeiras altas e baixas, e sendo separados periodicamente dos outros grupos, inclusive pela falta de visão de partes do espaço e da encenação, parece que o Grupo espera de nós que imaginemos as imagens, inspirados pela sonoridade que atravessa as paredes de tecido. É prazeroso ser surpreendido por imagens belas repentinamente... As vozes dos narradores atores são intensas e vivas, nos levam a compor imagens por meios de suas melopeias, mas estamos tão solitários que um certo sentido de ausência se torna excessivo, e confunde a relação com o espetáculo. Ao mesmo tempo somos abordados pelo olhar de atores que nos falam diretamente e somos distanciados pelas situações das quais não participamos. O isolamento não leva os grupos de espectadores sequer a se olharem, por que? Talvez porque a atmosfera de solenidade seja forte e não tenhamos sido encorajados a buscar o olhar de alguém para sair da solidão que as paredes determinam. “Prometheus” se torna, então, um teatro para se ficar só e pensar, pensar sobre palavras, uma experiência teológica.

 A estrutura da encenação é simples e bela. Tecidos, instrumentos musicais e corpos vibrantes enchem o espaço. Vozes fortes e bem distribuídas, sons que chegam do chão, dos objetos, dos corpos, do silêncio inundam o espaço com poesia, como um quadro vivo que nos convida à contemplação. O figurino parece inspirado nas vestes sacralizadas das danças afrodescendentes com suas rendas e saias amplas, os tons terrosos nos lembram o pó e o deserto de que ouvimos os atores falarem. Os cabelos e os pés dos atores estão à mostra, traduzindo a diferença entre os humanos, sem deixar de lembrar-nos do quão inumana é a liberdade de pisar o chão. A estrutura dramatúrgica desenha as viagens que os personagens fizeram para buscar vitórias nem sempre conquistadas. E em especial a corrida do cavalo Prometeu até a casa de Hefesto, ateia fogo ao ambiente, finalmente e rapidamente nos envolvendo naquela narrativa-celebração. 

 Escritura delicada e fiel ao elementos do mito de Prometeu, a encenação promove uma narrativa coerente e apreensível pela memória, como pedia Aristóteles para o tratamento de um mito em sua Poética. Experimentamos a visão da peripécia, quando os sucessos se mudam em contrários para o protagonista, e o reconhecimento quando ele passa da ignorância da extensão de seu ato, de busca de vingança ao distribuir o fogo aos humanos desafiando Zeus, ao conhecimento da sua desgraça. Experimentamos o caráter dos personagens, por meio de suas palavras mais que de ações, posto que a força da encenação é a narração e a composição desta para as mudanças no tempo. Tempo, palavra chave para refletir sobre a encenação “Prometheus”. A composição das viagens de Prometeu, de Epimeteu, de Pandora e de Éthon faz-nos experimentar um tempo específico daquela nossa reunião naquele espaço espetacular. Um tempo imaginário, um tempo que constrói uma cronologia só dali... uma das sensações mais relevantes que a encenação alcança. 

Interessante é pensar no que a distribuição de poderes feita pelo mito traz sobre os gêneros: homens são heróis, prudentes ou imprudentes, mulheres são portadoras dos males e monstros. Prometeu é atávico, astucioso, impetuoso e viril. Pandora, a primeira mulher, é oferecida como presente a Prometeu por Zeus, e porta a caixa onde estão guardados os malefícios que os humanos ganharão após o fogo. Epimeteu, o duplo de Prometeu que é imprudente, é quem abre a caixa e se dispersam os males, se constrói o tempo e a mortalidade dos humanos. Pandora aparece sedutora na encenação, típica representante da presença demoníaca da mulher. Éthon, a águia que devora o fígado de Prometeu durante todo o dia e descansa à noite, enquanto aquele se regenera, aparece como a paixão e a dependência que ela provoca nos apaixonados. Éthon e Prometeu se tornam unos, se mostram como corpo e sombra, como pensamento e ação. A morte de Éthon por Hércules liberta um Prometeu sem visão do futuro. Solitário na sua liberdade. 

Em “Prometheus” vemos um espetáculo de atores, corpos e vozes delineadas para criar o ambiente, o tempo e o espaço. São narrativas entrecruzadas que interagem e trazem poesia. O que nos falta é ser incluído no universo que nos é apresentado à distância, que nos é descrito com os olhos nos olhos, e que nos gruda nas cadeiras mesmo nos fazendo trocar de uma para outra por duas vezes. Como transpor a energia daqueles homens e mulheres travestidos em seres imemoriais para os nossos corpos, presentes e distanciados? Talvez, eles não quisessem mesmo que nos sentíssemos dentro do espetáculo, que o contemplássemos à distância, mas o teatro não é uma arte da vivencia, da percepção aguçada, da carne? Sua diferença não é ser ao vivo? Como aprenderemos a experimentar o mito, o inumano e o trágico sem que nossos corpos sejam contemplados pela simultaneidade das atmosferas e da presença física dos atores? Sem que nós celebremos em conjunto com eles? A beleza se torna fria na contemplação distante, como se estivéssemos vendo todo aquele universo detrás de um vidro. Esta é a perda no meio de tantas riquezas que “Prometheus” nos oferece.