quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

ELLES: mulheres artistas na coleção do Centro Pompidou




O século XX foi profícuo em experimentalismos e legou ao século seguinte uma densidade tecnológica desconhecida até então. A discussão da arte moderna trouxe uma série  de reflexões importantes que reorganizaram tanto as relações entre artistas, quanto a relação da arte com a sociedade. A expressão não racionalizada de pensamentos, como no Expressionismo; a abstração como projeto estético, como no Abstracionismo; o cinema; a moda; a imagem, o visual e a construção do olhar, a intencionalidade da visão. Diante de todas estes acontecimentos a arte se colocou como um percurso político, ideológico e econômico, para além de sua atividade estimuladora da sensibilidade. E as mulheres cumpriram papel importante nessa reordenação de relações.

Por um ado, as mulheres contribuíram com o pensamento ampliando as possibilidades de percepção da imagem, sob tonalidades de um ser humano que se modifica a cada quinze dias, um ser que obteve somente nesta época a respeitabilidade pela noção biológica e psicológica de igualdade. As mulheres do século XX foram responsáveis por conquistas fundamentais para a percepção política da arte, por sua contribuição ao debate sobre as diferenças e as igualdades entre os gêneros. O Feminismo foi um movimento guerrilheiro que afetou profundamente toda a estrutura social, e colocou novos parâmetros artísticos, ideológicos e humanos em voga.

Jacques Aumont (A Imagem, Papirus, 1993) chama atenção para os estudos sobre a diferença sexual na produção e fruição de imagens, e sua reflexão parece se materializar na exposição ELLES, de maneira poética e estimulante. Para Aumont, os estudos feministas insistiram na “assimetria entre personagens masculinos dotados do poder de olhar e personagens femininas feitas para serem olhadas”, gerando um fetiche da mulher como “objeto para ser olhado” e o do homem como “portador do poder de olhar”. Esta oposição alimentou a discussão e o reposicionamento de mulheres de várias gerações, e deu ensejo a uma produção complexa de manifestações artísticas de cunho desafiador na passagem entre o século XX e o século XXI. A exposição ELLES, dá conta de um mundo inteiro que esteve amalgamado com a produção artística mundial, mas que se individualizou como revisão de costumes, de nomenclatura e de percepções sobre a mulher.

Seria insano, penso, tentar dialogar com a exposição como um todo aqui neste espaço, por sua grandiosidade e intensidade. Quem não viu vá ver. Mas posso trazer à tona um naco de luminosidade dentre os focos que se misturam em ELLES, repetindo uma frase de Louise Bourgeois. Esta artista nasceu francesa e radicou-se nos EUA, conheceu a fama tardiamente e morreu em 2010, aos 98 anos de idade. Seu trabalho se concentrou em esculturas, no mais amplo significado desta arte. Materiais como madeira, aço, pedra, borracha, papel e tecido foram seus parceiros. Também produziu desenhos e gravuras.

Em ELLES, encontramos uma composição de tinta e linha sobre papel, de extrema delicadeza e feminilidade, sem título. Branco, vermelho e azul desenham uma forma abstrata que remete à ocupação do espaço pela intensidade nervosa. A linha costura o papel em espiral ao lado da tinta, que escorre vermelha no centro da lâmina. Louise escreve sobre as formas espirais desta composição:

“Começar pelo lado externo é o medo de perder o controle; as voltas são um aperto, um recuo, uma compactação até o ponto de desaparecimento. Começar pelo centro é afirmação, o movimento para fora é representação de dar, de abandonar o controle; de confiança, de energia positiva, a própria vida.” (Destruição do Pai, Reconstrução do Pai, Cosac & Naif, 2000)

Assim como os espirais delicados de Bourgeois, as mulheres promoveram na arte moderna e na passagem para a arte contemporânea um movimento de duas vias: de dentro para fora, revigoraram o pensamento social com valores femininos de afeto e intensidade; de fora para dentro, empurraram os limites ideológicos da arte, forçando a revisão de suas estruturas heteronormativas, brancas, europeias e ocidentais. Ainda não foi o suficiente para a transformação real, mas é consistente para que esta não possa mais ser evitada.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A Dama do Mar



Direção, cenário e conceito de luz: Robert Wilson
Co-direção: Giuseppe Frigeni
Texto: Susan Sontag baseado na peça de Henrik Ibsen
Baseado na peça de Henrik Ibsen – Tradução: Fábio Fonseca de Melo
Revisão e adaptação: Leila Guenther
Música: Michael Galasso
Figurinos: Giorgio Aramani
Desenho de luz: A.J. Weissbard
Assistência de luz: Fiammetta Baldiserri
Desenho de som: Peter Cerone
Visagismo: Luc Verschueren
Assistência de direção: André Guerreiro Lopes

Elenco
Lígia Cortez
Ellida Wangel
Ondina Clais Castilho
Hélio Cícero
Luiz Damasceno
Felipe Sacon
Bete Coelho – participação especial – Alternância de papéis

Projeto
Change Peforming Arts, Milão, Itália
Diretores artísticos: Franco Laera e Elisabetta di Mambro
Coordenadora de Produção: Virginia Forlani

Realização: SESC – Serviço Social do Comércio / SP
Presidente Conselho Regional: Abram Szajman
Diretor do Departamento Regional: Danilo dos Santos Miranda

(Informações do Programa Impresso da Apresentação no SESC- Pinheiros)


“Desejo e coragem de lutar pela inovação” (Giorgio Armani)

Ver teatro não tem sido tarefa fácil na nossa atualidade. Um sem número de experiências arrogantes tem se misturado aos projetos de estudo e de mergulho nas nuances de uma forma tão múltipla e encantadora. Quando se presencia uma busca intensa e, por assim, dizer, invasiva de nossa habilidade de nos deixar afetar, como “A Dama do do Mar” de Bob Wilson, tudo concorre para um momento de renovação, de vivificação, de doce angústia pelo espetáculo da vida.

Pressupondo que no teatro não há “nenhuma separação entre as várias expressões artísticas”, que “o que é visual e o que é sonoro são aspectos inseparáveis”, Bob Wilson compartilha com atores, que se permitem criar novos níveis de realidade, um mundo artificial, capaz de nos apresentar verdades profundas. Uma mulher-foca, que pode ser apenas uma mulher enfadada, que pode ser uma mulher reprimida, que pode ser uma mulher louca, se mostra nas suas entranhas para nós, os olhares estupefatos. Um tempo-ritmo que não se rende à velocidade dos cotidianos pós-modernos, que insiste em fazer revisar todos os hábitos de envolvimento e de leitura de uma obra teatral. Um espaço lúdico e surreal, deliciosamente simples e limpo, mas que transpõe a vida para múltiplos patamares de percepção. Ah... quanto é inspirador poder abandonar a verdade e criar uma realidade. E quanto é nutritivo para a imaginação e para a inteligência retornar desta aventura para um mundo fragmentado e confuso como o nosso atual.

A plasticidade da cena pode nos inspirar a recompor a plasticidade da vida, porque nos oferece as possibilidades de criação de sujeitos, a partir de nós mesmos, a partir de nos espelharmos no diferente. Um teatro poema que não está a serviço de uma realidade, porque consegue estabelecer novas realidades, que não se submete à vaidade de atores ou de grupos de atores, porque está voltado para uma percepção compartilhada da violência da nossa imaginação.  Um teatro para desorientar nossas capacidades intelectuais e irritar nossas concepções pequeno-burguesas de sucesso, de crítica, de qualidade.

Um mosaico belo e delicado de sons, cores e movimentos delineados pela busca da precisão. Seres pós-humanos dispostos a se relacionar com humanos que fingem não estar presentes, que acatam os longos silêncios, e que, talvez,  não estejam confortáveis nas suas cadeiras por tanto tempo, olhando para um nada, uma constante dúvida sobre a coerência e sobre o delírio.

Me veio uma necessidade de voltar a este espetáculo, verdadeiramente um espetáculo, por ter medo intelectual de me contaminar pela ingenuidade capitalista do teatro feito para si mesmo. Do teatro feito para forçar a capitalização e não a experiência. Por precisar me lembrar a mim mesma que, antes de tudo, teatro tem um papel social muito importante, mais importante que a continuidade de um grupo, ou a vivencia individual de um processo de trabalho... Teatro é uma expressão de alteridade. Sua perspectiva é, para mim e também para outros embora não para todos, um contexto de aprendizado sobre o outro. Uma relação para a redescoberta da vida.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Apichatpong Weerasethakul

 

Exibição de Videoarte
FLUXUS 2013

Apichatpong Weerasethakul, apelidado por si mesmo Joe, é um realizador do cinema independente tailandês. Licenciado em Arquitetura pela Universidade de Khon Kaen (Tailândia) e Mestre em Belas Artes – Cinema, pelo Art Institute (Chicago - EUA). Nascido em 1970 e filho de médicos, tornou-se uma figura central no cinema contemporâneo desde 1994, quando iniciou seu trabalho como videoartista e criador de instalações, estas já expostas em museus e centros de arte do mundo inteiro.

A exposição “Apichatpong Weerasethakul” é, na verdade uma coletânea de oito filmes de Joe: sete curtas e um longa. Os sete curtas foram realizados entre 2006 e 2012, e o longa, “Hotel Mekong”, é de 2012. Foi realizada em Belo Horizonte/MG na Galeria Oi Futuro, com curadoria de Francesca Azzi (brasileira, diretora da Zeta Filmes). A mostra do trabalho de Weerasethakul faz parte do projeto “Fluxus”, coordenado pela curadora.

O “Fluxus” - Festival Internacional de Cinema na Internet, surgiu em 2000, como “Brasil Digital”, antes de existir o You Tube e o Google. O projeto buscou criar novos espaços de exibição para o filme curto brasileiro, e em 2003 se tornou internacional.

Compartilhar as imagens de Joe W. é como adentrar um mundo reinventado. O cineasta complementa a realidade documental, na qual baseia seus filmes, com uma visão onírica e abstrativa de seus elementos, objetos e participantes. Com uma narrativa não-linear, Joe promove intensas sensações e associações mentais e afetivas, que podem desencadear reflexões políticas, pessoais e humanistas de grande alcance. Sua força parece estar num olhar extremamente humano sobre os homens e mulheres que vivem erraticamente sobre este planeta tresloucado. O inumano de cada uma das personas que seus filmes enfocam, e dos espaços que são tratados como ambientes vivos e significativos, transpõe o mistério da vida para a tela bidimensional, codifica a passagem de estados de espírito em imagens  inusitadas e líricas.

Num tempo de excesso de imagens, de filmes em profusão, de sentimentalidades amassadas pelo consumismo, os filmes de Joe W. podem despertar um luminosidade interior. Podem injetar fantasia e amor em nossas cabeças cansadas e repletas de pensamentos e decisões. O cinema de Joe W. poderia, penso, ser dito supra-realista, porque não economiza delírios possíveis para nosso mundo atual, e, ao mesmo tempo, imanta a realidade de vários níveis de percepção. É doce e bruto, é feminino e agressivo, é grandioso e simples.

Joe Weerasethakul é um artista de seu tempo, disposto a ver e fazer a poesia do cotidiano, e com competência de mestre para instaurar um clima criativo naqueles que se dispuserem a mergulhar no tempo, ao invés de serem dominados por ele.