O
século XX foi profícuo em experimentalismos e legou ao século seguinte uma
densidade tecnológica desconhecida até então. A discussão da arte moderna
trouxe uma série de reflexões importantes
que reorganizaram tanto as relações entre artistas, quanto a relação da arte
com a sociedade. A expressão não racionalizada de pensamentos, como no
Expressionismo; a abstração como projeto estético, como no Abstracionismo; o
cinema; a moda; a imagem, o visual e a construção do olhar, a intencionalidade
da visão. Diante de todas estes acontecimentos a arte se colocou como um
percurso político, ideológico e econômico, para além de sua atividade
estimuladora da sensibilidade. E as mulheres cumpriram papel importante nessa
reordenação de relações.
Por
um ado, as mulheres contribuíram com o pensamento ampliando as possibilidades
de percepção da imagem, sob tonalidades de um ser humano que se modifica a cada
quinze dias, um ser que obteve somente nesta época a respeitabilidade pela
noção biológica e psicológica de igualdade. As mulheres do século XX foram
responsáveis por conquistas fundamentais para a percepção política da arte, por
sua contribuição ao debate sobre as diferenças e as igualdades entre os
gêneros. O Feminismo foi um movimento guerrilheiro que afetou profundamente
toda a estrutura social, e colocou novos parâmetros artísticos, ideológicos e
humanos em voga.
Jacques
Aumont (A Imagem, Papirus, 1993)
chama atenção para os estudos sobre a diferença sexual na produção e fruição de
imagens, e sua reflexão parece se materializar na exposição ELLES, de maneira
poética e estimulante. Para Aumont, os estudos feministas insistiram na
“assimetria entre personagens masculinos dotados do poder de olhar e personagens
femininas feitas para serem olhadas”, gerando um fetiche da mulher como “objeto
para ser olhado” e o do homem como “portador do poder de olhar”. Esta oposição
alimentou a discussão e o reposicionamento de mulheres de várias gerações, e
deu ensejo a uma produção complexa de manifestações artísticas de cunho
desafiador na passagem entre o século XX e o século XXI. A exposição ELLES, dá
conta de um mundo inteiro que esteve amalgamado com a produção artística
mundial, mas que se individualizou como revisão de costumes, de nomenclatura e
de percepções sobre a mulher.
Seria
insano, penso, tentar dialogar com a exposição como um todo aqui neste espaço,
por sua grandiosidade e intensidade. Quem não viu vá ver. Mas posso trazer à
tona um naco de luminosidade dentre os focos que se misturam em ELLES,
repetindo uma frase de Louise Bourgeois. Esta artista nasceu francesa e
radicou-se nos EUA, conheceu a fama tardiamente e morreu em 2010, aos 98 anos
de idade. Seu trabalho se concentrou em esculturas, no mais amplo significado
desta arte. Materiais como madeira, aço, pedra, borracha, papel e tecido foram seus
parceiros. Também produziu desenhos e gravuras.
Em
ELLES, encontramos uma composição de tinta e linha sobre papel, de extrema
delicadeza e feminilidade, sem título. Branco, vermelho e azul desenham uma
forma abstrata que remete à ocupação do espaço pela intensidade nervosa. A
linha costura o papel em espiral ao lado da tinta, que escorre vermelha no
centro da lâmina. Louise escreve sobre as formas espirais desta
composição:
“Começar pelo lado externo é o medo de
perder o controle; as voltas são um aperto, um recuo, uma compactação até o
ponto de desaparecimento. Começar pelo centro é afirmação, o movimento para
fora é representação de dar, de abandonar o controle; de confiança, de energia
positiva, a própria vida.” (Destruição do Pai, Reconstrução do Pai, Cosac &
Naif, 2000)
Assim
como os espirais delicados de Bourgeois, as mulheres promoveram na arte moderna
e na passagem para a arte contemporânea um movimento de duas vias: de dentro
para fora, revigoraram o pensamento social com valores femininos de afeto e
intensidade; de fora para dentro, empurraram os limites ideológicos da arte,
forçando a revisão de suas estruturas heteronormativas, brancas, europeias e
ocidentais. Ainda não foi o suficiente para a transformação real, mas é consistente para que esta não possa mais ser evitada.