sexta-feira, 13 de setembro de 2013

No si puede vivir sin amor



girl in crimson dress menina vestido vermelho escarlate marcelo perin
Menina do vestido vermelho/ Marcelo Perin
Textos: Caio Fernando de Abreu
Concepção, Dramaturgia e Atuação: Nara Keiserman
Supervisão, Iluminação e Design:  Demetrio Nicolau
Orientação Musical: Alba Lírio


“Este trabalho nasceu de uma pesquisa artística e acadêmica, coisas que às vezes podem conviver, e é inspirado em alguns princípios, ideias, que eu quero partilhar com vocês”. 
Nara Keiserman



Para o desenvolvimento de sua pesquisa artístico-acadêmica, Nara Keiserman elegeu os seguintes princípios: “Fogo Sagrado”, a partir de Mônica Oliveira Costa; “Leitura Corporal”, por Nereida Fontes Vilela; “Linguagem Orgânica”, de Alex Fausti; e o conhecimento dos Chakras, como podemos verificar no programa do espetáculo. 

Em seu sítio eletrônico, “Núcleo Fogo Sagrado – Alinhamento Energético” (www.fogosagrado.net), Mônica Oliveira se apresenta como “fundadora do Núcleo Fogo Sagrado, que realiza seminários, workshops, palestras e forma novos terapeutas em vários países como: Alemanha (mais de trinta cidades), Áustria (Viena), Espanha, Itália.(…). Desenvolveu a técnica do Fogo Sagrado-Alinhamento Energético, a partir da experiência de alguns anos de trabalho desde 1998, com o Xamã Dior Allem (como é chamado atualmente), iniciando a formação de terapeutas em Alinhamento Energético e, após sua morte, desenvolveu a técnica aprofundando ainda mais o seu potencial terapêutico e dando o nome de FOGO SAGRADO.” Esta técnica integra a busca da consciência de que “tudo tem seu lado luz e seu lado sombra”, a percepção de que é preciso trazer à consciência novas visões sobre cada situação e que pode-se mudar o padrão interno de sentimentos, pensamentos e memórias, para atrair novas situações para a vida por sincronicidade. Seus procedimentos são: canalização, dirigência, leitura do campo de energia, limpeza do campo de energia, leitura da cura, recebimento do corpo em luz e o próprio alinhamento energético individual.

De outra parte, a Leitura Corporal praticada por Nereida Fontes Vilela (www.leituracorporal.com.br), tem como princípios básicos descrever e detalhar a função emocional de cada segmento e estrutura corporal, revelando associações entre o que se manifesta no corpo físico e os processos psíquicos e sensoriais do ser humano. Entre seus objetivos, pode-se destacar “reconhecer e exercer o convívio com o corpo, ler e compreender suas manifestações, evoluir na saúde, no plano físico e no plano sútil. A Leitura Corporal afirma que todo sinal ou sensação física permite que se perceba o fluxo saudável no adoecido, que aponta o caminho para o reequilíbrio, para a clareza, para a assimilação e o aproveitamento de cada experiência vivida”. 

A “linguagem orgânica”, de Alex Fausti, é um método de autoconhecimento por meio de uma atitude de amorosidade, no qual se desenvolve uma nova percepção, tradução e ressignificação das experiências individuais.  Nara Keiserman, professora de teatro e atriz,  nomeia estas práticas como “alternativas, no sentido lato da palavra: que oferecem uma alternativa – rica e eficiente de metodologia pedagógica na formação do ator” . Seu trabalho na Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio, está voltado para a “pedagogia do trabalho corporal do ator” (idem), na qual “a corporeidade é considerada a partir da obra de determinados encenadores-pedagogos [Delsarte, Stanislavski, Meierhold, Laban, Artaud, Grotowski, Barba e Lehmann], colocada em confronto com saberes advindos de disciplinas não vinculadas ao Teatro” (ibidem).

A cena constituída a partir desta pesquisa é coerente com ela. Vemos um corpo intenso e vivo se movimentando com delicadeza e teatralidade. Uma voz que se multiplica em sonoridades, palavras e cantos, nos guiando pelo universo humano, demasiadamente humano de Caio Fernando Abreu. Seu vestido vermelho forte desfila várias mulheres, conflitos e prazeres entre uma mesa e duas cadeiras, trazendo à tona a dramaticidade da vida cotidiana. Nara atriz nos envolve num mundo simultaneamente próximo e distante,  pois narra dores de amores, vinganças, delírios e sarcasmos que nos acompanham no dia a dia, mas que se tornam fantásticos no palco.

Um corpo que desenvolve suas percepções, que toma gestos como significantes imediatos, e que não precisa de acrobacias para se comunicar conosco, os espectadores. Somos interpelados pela presença e pela poesia desta presença. A mim me pareceu que seus estudos sobre o corpo e sua linguagem assumem facilmente a teatralidade, e se comunicam de modo profundo com nossa imaginação. Uma montagem singela e poderosa, que faz lembrar que o teatro é antes de tudo a vida intensificada em conjunto com o outro, aquele que aceita e desenvolve o jogo imaginativo.

Espero que a influência da Nara atriz se faça sobre os alunos da Nara professora, e que sua pesquisa e seu teatro contribuam para a compreensão da qualidade e da luz própria do bom teatro. Fui feliz assistindo uma demonstração de paixão aliada a uma sistematização do conhecimento artístico. Obrigada Nara!


quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A Espuma dos Dias



A Espuma dos Dias
 (L’Ecume des Jours) 
125 min.
França/Bélgica - 2013.

Direção: Michel Gondry.
Roteiro: Luc Bossi, baseado no romance de Boris Vian.
Elenco: Romain Duris, Audrey Tatou, Gad Elmaleh,  Omar Sy, Aîssa Maîga, Charlotte Lebon,  Sacha Boundo, Philippe Torreton.

Adaptação do romance de mesmo nome do escritor, dramaturgo, poeta e letrista francês Boris Vian, publicado em 1947. Vian é identificado em sua biografia com o movimento surrealista e com o anarquismo.


O juízo sobre uma obra de arte é sempre histórico, pois está sempre envolvido com os elementos de seu tempo, está sempre marcado pelas escolhas e pelos princípios que seu autor pratica. Para experimentar a reflexão sobre Espuma dos Dias, o filme de 2013, me permitirei embarcar naquilo de surrealismo que existe na minha própria e surreal realidade de pensadora brasileira contemporânea.

O Surrealismo como movimento nasceu e se criou francês, nos anos 1920. Causou variada influência na cultura ocidental, seja nas Artes seja na política que veio a tratar destas. Digo isso porque a partir das experimentações e manifestos dos líderes e dos participantes do movimento surrealista, a irracionalidade passou a ser reconhecida como parte da manifestação artística, e esta forma de percebe-la abriu vários novos formatos de produção e de análise. Ao preconizar a luta contra o domínio da razão, a liberação do inconsciente e a busca da super-realidade, a realidade além da realidade imediata, o surrealismo provocou estudos e experiências sobre a mente, o raciocínio, a imaginação e a sentimentalidade. Nomes como André Breton, Salvador Dali, Guillaume Apollinaire, Antonin Artaud, Luis Buñel e René Magritte são parte do grupo de artistas e pensadores que buscou nas teorias psicanalíticas e no inconsciente noções e conceitos para entender e ampliar a atividade criativa. Este grupo influenciou fortemente seus pares, envolvidos ou não com o movimento, e a modernidade.

Boris Paul Vian, viveu e se comprometeu com as ideias e experiências dos surrealistas, até sua morte em 1959. Estabeleceu relações com Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, a partir das quais participou da equipe de editores da revista Temps Modernes  (Tempos Modernos), fundada em 1945. Sua produção literária foi publicada pelas Editions Gallimard, mas não se tornaram grandes sucessos de venda. A reedição de seu livro pela editora Cosacnaify, em 2013, celebra uma redescoberta do autor.

Cinema e literatura tem um longo percurso de interseções, mas nem de longe um tenta ser fiel tradutor da outra. Se mantém independentes e dão suporte a obras geniais e medíocres quase na mesma medida. Em Espuma dos Dias, a combinação é poderosa, intensa e sedutora. A pequena história de dois amantes que se veem frente a frente com a doença de uma e a tortura psicológica de outro por causa das despesas excessivas, aborda fidelidade, amizade e loucura, como elementos presentes no amor, nos relacionamentos afetivos e na vida moderna. O filme ainda aponta o consumismo, a medicina, a religiosidade e trabalho como elementos de uma cartografia da dor e do desgaste emocional do ser humano da época moderna.

Colin e Chloé se apaixonam. Ele é rico, ela não é. Vivem um delicioso romance rodeado de jogos de sedução, de passeios românticos e de uma felicidade simples. Na lua de mel Chloé adoece, e dai em diante toda a fortuna e toda a vida de Colin se concentram em tentar sua cura. O principal remédio de Chloé são as flores, as quais são trazidas em largas braçadas para seu quarto, na tentativa de fazer a flor que se instaurou no seu pulmão sair de lá. Nicolas, o amigo, cozinheiro, motorista e administrador da fortuna de Colin, vive em conjunto o desfazimento dos espíritos que sofre o casal, até que o marido o obriga a afastar-se. O apartamento colorido, musical e iluminado de Colin vai se acinzentando, diminuindo e se desfazendo na mesma medida em que a doença vai secando o corpo de Chloé. No momento da morte da amada, Colin está totalmente miserável, e o enterro se dá em vala comum e sem rituais de despedida, pois a igreja só faz enterros decentes para quem pode paga-los. Nicolas e Isis, os amigos, estão ao seu lado no último momento. Eis o romance.

Em meio a símbolos do capitalismo, como roupas de marcas famosas, vinhos e automóveis incríveis, a comida surge como uma distinção dos afortunados deste sistema. Nicolas é um cozinheiro de mão cheia, que faz uma comida viva que modifica o espírito de seu senhor. As imagens de comidas vivas, em movimento constante, coloridas e fartas, enchem os olhos... Ao final de cada refeição, e até o meio do filme são muitas, toda a louça, comida que resta, talheres e forros de mesa são jogados no lixo. Nada é reutilizado, pois são quebrados e os cacos são despejados em tubos processadores. É possível ler o consumismo e sua poderosa influência sobre nós nestas ações, na tranquilidade que temos em transformar qualquer coisa em lixo a qualquer momento, sem problemas de consciência. Mesmo quando a pobreza se instala na vida de Colin, os restos continuam indo para o lixo.

A medicina é caríssima. O médico dá seus veredictos de morte por altos preços. Receita remédios que podem matar, mas que devem ser experimentados para que a pesquisa sobre a cura avance. Enxerga o animal no corpo, mas despreza os sentimentos, e isso para se manter racional e capaz de aplicar os tratamentos mais grotescos, com vistas a uma possível cura. E quando nada mais funciona, abandona a paciente. Simples assim.

A igreja serve aos interesses de seus prelados, principalmente os materiais e financeiros. Tudo pode mudar a qualquer momento e sem prévio aviso, pois eles são aqueles que se comunicam com o divino. Sabem das coisas, e ponto final. Se tem como pagar, tudo será feito. Se não tem, que se contente com uma mínima ação cruel. O casamento de Colin e Chloé começa com a disputa de uma corrida até o altar, pois só poderá se casar o par que for vitorioso. Só as vitórias interessam aos padres. À parte a ironia extrema, podemos localizar na alegoria do filme uma instituição que cobra altos preços por cada um dos rituais que criou para uma comunidade, e uma comunidade que os pratica sem exame e com medo de “não ir para o céu”, como conhecemos no mundo em que vivemos. A religiosidade não ultrapassa os meros atos automatizados, que conferem distinção social aos seus praticantes sem, contudo, oferecer verdadeiro conforto espiritual.

O trabalho, este é o jugo medonho do ser humano moderno. É humilhante, desgastante e mata. Ocupa todas as horas úteis do dia, destrói a inteligência e oferece uma remuneração ridícula. Mas é impossível viver sem ele. Trabalhar gasta quase tanto dinheiro quanto produz. Todos o odeiam, mas se submetem a ele para tentar alcançar seus objetivos no mundo, como salvar sua amada, no caso de Colin. Torna tudo pequeno e sem importância, pois toma todo o tempo e toda a energia das pessoas, transformando-as em meros bonecos executores de tarefas. Alguma semelhança com fatos reais?

Mas existem as festas! Na primeira parte do filme, quando tudo está bem e leve, as festas são uma constante: movimentadas, fartas e com muita dança. Dançar é também uma distinção. Fazer da festa um momento de êxtase, é uma obrigação!

As imagens surreais de Espuma dos Dias lembram que o cinema não precisa ser documental nem naturalista para estimular a imaginação. Que pode fazer experimentos tecnológicos sobre a imagem, e com isso proporcionar visões simbólicas do mundo e de nós mesmos. As máquinas, a comida, a dança, os objetos deste filme podem passar por exageros loucos demais, ou podem nos levar a pensar na necessidade de delirar! A arte está para nos instigar, nos provocar, nos irritar, nos tirar da mesmice dos dias... O cinema de Michel Gondry aborda a imagem como suporte da manifestação artística do cinema: até onde a tecnologia pode nos proporcionar diversão e susto? Utilizar a capacidade do cinema de não ser a vida, de mostrar uma vida outra, códigos outros de relação com o outro, é fazer arte do cinema, é se desprender da televisão, da publicidade e da própria vida. É um modo de nos lembrar que nós inventamos o que somos e, portanto, podemos desinventar...

A Espuma dos Dias deveria ser exibido nas escolas de ensino médio, comentado e desconstruído pelos professores de arte, de história, de ciências... para inserir a invenção da realidade na discussão da vida, que é papel da educação escolar fazer. E deve ser visto com olhos joviais, com corpo relaxado, com vontade de rir e de chorar, de não ser sério, de curtir um momento de hiato.