segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Get Out!



Um solo de Assis Benevenuto.

Texto, Direção e Atuação: Assis Benevenuto
Assistência de Direção: Marcos Coletta
Criação de Figurino: Mariana Blanco
Criação de Luz: Marina Arthuzzi
Criação de Cenário: Daniel Herthel
Trilha Sonora: Assis Benevenuto
Vídeo: Laboratório Filmes – Davi Fuzzari e Marco Gonçalves
Design Gráfico e Assessoria de Imprensa: Marcos Coletta
Produção e Realização: Quatroloscinco – Teatro do Comum.


“Eu nunca estive no voo 402 de 1996, não estive no LT 933, no AF 447, não era eu no ASA 77, nem no Flying Top American... Aquele avião que agora corta o céu, não, não sou eu, e se você está aqui é porque seria impossível estar em qualquer outro lugar. Está tudo dentro da cabeça: Get Out! Get Out! Não acredite em nada! Anda! Anda...”


Em Get Out!  se pode conviver com uma teatralidade pós-moderna. Digo isso pensando em duas circunstâncias, principalmente.  A primeira é o conceito de teatralidade, a partir das ideias de Roland Barthes[i], quando diz que trata-se de uma “espessura de signos e de sensações que se edifica em cena a partir do argumento escrito, é aquela espécie de percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior”.

Ao nos depararmos com a busca de um ator, que assume nossa presença e nos conta da intensidade dos pensamentos e imagens que transbordam de sua cabeça, vamos ao encontro do mundo, da convivência, das suas dificuldades e incoerências, somos sugados para um contexto fragmentado. Somos envoltos por uma aura de fantasia, mistério e confissão que nos retira do lugar cotidiano e da sala de apresentação. Vivenciamos uma espessura de signos e sensações que se desdobram, permitindo que desenvolvamos nossa própria viagem naquele voo do qual somos passageiros improváveis. Não somos nós, é o mundo.

Ao mesmo tempo, somos tragados por uma volúpia diante de palavras, imagens e sonoridades desconectadas entre si, capazes de dar a perceber a velocidade do pensamento. A velocidade da descoberta, a inconstância do fluxo de ideias que nos atravessa intermitentemente, dentro das nossas cabeças. Como a nos chamar a observar o pensamento ao invés de pensar, Assis B. nos conclama a viajar... quase a delirar com tantas possibilidades de sonho, de projetos, de desejos, de mentiras, de provocações, que fazemos a nós mesmos, durante o estado de vigília.

E se nos colocamos em seu lugar, naquela viagem que não saiu do lugar, naquele voo que não decolou, mas que rompeu a barreira do tempo e do espaço, fazemos uma longa peregrinação à alma de um homem jovem e cheio de angústias. Uma peregrinação ao coração assustado, feroz e exuberante de um homem em pleno voo para fora do si mesmo. E, então, nos deparamos com a perspectiva da pós-modernidade.

Enquanto busca a teatralidade de sua fala comum, de seu corpo presente, de suas ações simples, Assis B. dispõe lado a lado blocos de referencias, sem deixar evidente suas relações, ou aquilo que os uniu naquele fio narrativo. Não se ocupa de explicar suas escolhas, ao contrário, se preocupa em demonstrar que o processo é um fluxo, e alcança eliminar a lógica formal, em nome de uma lógica aformal. O teatro se realiza como a presentação de várias intensidades autônomas, que não estão em função de mensagens, que não são explícitas e que podem ser míticas, se assim o quiser seu espectador.

Na segunda circunstância a que nos leva Get Out!, a significação é a resultante que o próprio espectador faz daquilo que para ele configurou-se em sentido. Saudável brincadeira com a vida e a percepção dela, que a pós-modernidade enseja... Se cada um de nós se levasse menos a sério, talvez pudéssemos alcançar viajar naquele voo, no qual Assis B. não esteve e nem nenhum de nós. E voltaríamos a delirar com nossos próprios desejos. Nos tornaríamos capazes de viver o pensamento, ao invés de enjaula-lo na coerência. E para isso serve o teatro: para nos mostrar que podemos ser mais livres, menos rígidos e extremamente poéticos, se vemos toda nossa confusão interior com olhos estéticos.




[i] PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Amassa!



Cia Contém Glúten / Brasília-DF
Criação Coletiva
Direção: Júlia Gunesch
Atores bailarinos: Paulo Victor Gandra, Haila Beatriz e Rebeca Castelo Branco
Músicos: Lucas Muniz e Isabella Pina
Iluminação: Ana Luiza Quintas e Marcelo Augusto
Produção: Isabella Pina;

“O espetáculo se dá em uma padaria e conta o caso de amor entre três personagens: duas mulheres que lutam pelos suspiros e amassos de um cobiçado padeiro. A paixão e o jogo de interpretação bem-humorada são traduzidos fielmente pelo tango ao vivo, entoado por um acordeão e um cajón.”
(texto do release)


A possibilidade de experimentação é um dos maiores ganhos de um curso profissionalizante de teatro, como o que as universidades podem proporcionar. “Amassa” é fruto da possibilidade de buscar e de realizar processos criativos no ambiente formativo. Todas as visões que ele sugere, tanto do ser humano quanto do teatro, trazem em si o aspecto da experimentação e da descoberta.

 Inicialmente, o cenário é intenso! Cheio de farinha e de pães causa sensação de sujeira, de bagunça, de desperdício, mas também de vida, de criação, de dar-se ao outro. O trabalho de fabrico de pães é uma doação, mesmo na perspectiva do seu comércio, pois o pão é o alimento primeiro. Na sua simplicidade, a mistura de farinha, água e sal, atravessou pelo menos seis séculos e continua presente em mesas ricas e pobres. Seu significado holístico é de positividade, prosperidade e harmonia. A padaria onde os personagens se atiram numa dura disputa, mistura, ela mesma, as dores e as riquezas que o amor e o sexo podem oferecer à vida.

Em seguida, o tango. A mescla de paixão, sensualidade, agressividade, tristeza. A submissão da mulher à força do parceiro que a desloca pelo chão. Propício ao contexto em que se colocam as duas mulheres em cena, o tango é um texto em “Amassa!”. Poderia ter se tornado o texto, no sentido de que a dança e a escolha das melodias poderia ter acentuado a disputa, poderia ter substituído falas, poderia ser o próprio conflito. Mas esta é uma opinião minha. O grupo desenvolveu um processo de criação de passos a partir da coreografia tradicional do tango, juntando elementos de humor e de atuação dramática, o que colore e diverte. Mas também incita à irritação: a submissão na dança leva a pensar na submissão da  mulher à sociedade machista.

Este particular, do tratamento da submissão, é sumamente curioso. Sabe-se que nos submetemos a algo ou alguém se não conhecemos outras possibilidades ou se queremos. Que uma submissão pode ser rompida a qualquer momento, desde que optemos por isto. Mas que pode gerar prazer, ser conveniente, e, até mesmo, ser de mão dupla. Pois estas características surgem todas em “Amassa!”. O homem é totalmente dominado pelo processo de sedução continuada que cada mulher desenvolve, cada uma com suas armas. Não consegue se decidir e vive dividido entre as duas, entre as noites e os corpos que ambas lhe oferecem. As mulheres são dominadas pela disputa, a ponto de se submeterem a papéis inconcebíveis para a mulher pós-moderna. Lutam entre si, se descabelam, se ofendem, torturam-se na intimidade e na solidão. Mas não saem da disputa. Estão submetidas à necessidade de vencer. Muito mais que de amar ou praticar o sexo.

O final expressionista traz uma pergunta: as mulheres matam e comem o homem. Somos incapazes de conviver com aquilo que não podemos dominar?

Há quase uma ingenuidade na massa de “Amassa!”, provinda, talvez, dos 20 anos de seus criadores. Todas as ações improvisadas em seus ensaios parecem ter vindo para a cena, enchendo o palco de repetições. Mas as repetições não são conscientes, o que as torna vazias. Os tangos escolhidos são muito conhecidos, e se tornam música mais que texto, pois nos trazem memórias ao invés de nos fazer mergulhar na angústia daqueles seres humanos, presos em sua submissão ao medo da derrota. Quando a canção consegue se esvaziar de significados imediatos, como em cenas nas quais é acelerada ou excessivamente alongada, somos tomados na plateia por uma sensação intensa e dolorosa. Quais as dores íntimas daqueles seres humanos subjugados e infelizes. O patético das situações se engrandece e podemos suspirar sem medo... sim, no fundo somos algo tolos quando disputamos o interesse de alguém.

Em sua defesa, além da própria força de sua experimentação cênica, “Amassa!” mostra elementos importantes da performance arte, como atitudes e ações que transparecem estar ligadas às vidas individuais de seus criadores... Uma das atrizes tem seu cabelo crespo e grande transformado em vassoura, como, talvez, ela tenha ouvido centenas de vezes durante a infância e a adolescência. Contudo, continua lindo e intenso, assumido e feminino. Os longuíssimo braços e pernas da outra atriz são enfatizados pelo figurino, e por movimentos e ações que os tornam verdadeiros galhos de uma imensa e magra árvore-mulher. Sim, ela também deve ter ouvido várias vezes que se parecia com um “vara-pau”... Ou não. O fato é que estas características e a forma irônica como são usadas intensificam o poder de enervação que o espetáculo desenvolve. E, me parece, este mesmo é o objetivo de uma cena: tirar as pessoas de seu estado de conforto.

“Amassa!” transpira energia jovem, submete o pensamento a uma série de dúvidas e pode despertar a raiva. Mas, também, é grandioso no seu apelo ao corpo como espaço de comunicação com  espectador, é corajoso na sua busca de envolver teatro, dança e música em ações cênicas contundentes e, mais que tudo, para satisfação desta que lhes escreve, proporciona a chance de fazer teatro para o corpo de um espectador que está anestesiado pelo excesso de mediações das suas relações com o mundo. Por tudo isto, vale a pena ser visto.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

No si puede vivir sin amor



girl in crimson dress menina vestido vermelho escarlate marcelo perin
Menina do vestido vermelho/ Marcelo Perin
Textos: Caio Fernando de Abreu
Concepção, Dramaturgia e Atuação: Nara Keiserman
Supervisão, Iluminação e Design:  Demetrio Nicolau
Orientação Musical: Alba Lírio


“Este trabalho nasceu de uma pesquisa artística e acadêmica, coisas que às vezes podem conviver, e é inspirado em alguns princípios, ideias, que eu quero partilhar com vocês”. 
Nara Keiserman



Para o desenvolvimento de sua pesquisa artístico-acadêmica, Nara Keiserman elegeu os seguintes princípios: “Fogo Sagrado”, a partir de Mônica Oliveira Costa; “Leitura Corporal”, por Nereida Fontes Vilela; “Linguagem Orgânica”, de Alex Fausti; e o conhecimento dos Chakras, como podemos verificar no programa do espetáculo. 

Em seu sítio eletrônico, “Núcleo Fogo Sagrado – Alinhamento Energético” (www.fogosagrado.net), Mônica Oliveira se apresenta como “fundadora do Núcleo Fogo Sagrado, que realiza seminários, workshops, palestras e forma novos terapeutas em vários países como: Alemanha (mais de trinta cidades), Áustria (Viena), Espanha, Itália.(…). Desenvolveu a técnica do Fogo Sagrado-Alinhamento Energético, a partir da experiência de alguns anos de trabalho desde 1998, com o Xamã Dior Allem (como é chamado atualmente), iniciando a formação de terapeutas em Alinhamento Energético e, após sua morte, desenvolveu a técnica aprofundando ainda mais o seu potencial terapêutico e dando o nome de FOGO SAGRADO.” Esta técnica integra a busca da consciência de que “tudo tem seu lado luz e seu lado sombra”, a percepção de que é preciso trazer à consciência novas visões sobre cada situação e que pode-se mudar o padrão interno de sentimentos, pensamentos e memórias, para atrair novas situações para a vida por sincronicidade. Seus procedimentos são: canalização, dirigência, leitura do campo de energia, limpeza do campo de energia, leitura da cura, recebimento do corpo em luz e o próprio alinhamento energético individual.

De outra parte, a Leitura Corporal praticada por Nereida Fontes Vilela (www.leituracorporal.com.br), tem como princípios básicos descrever e detalhar a função emocional de cada segmento e estrutura corporal, revelando associações entre o que se manifesta no corpo físico e os processos psíquicos e sensoriais do ser humano. Entre seus objetivos, pode-se destacar “reconhecer e exercer o convívio com o corpo, ler e compreender suas manifestações, evoluir na saúde, no plano físico e no plano sútil. A Leitura Corporal afirma que todo sinal ou sensação física permite que se perceba o fluxo saudável no adoecido, que aponta o caminho para o reequilíbrio, para a clareza, para a assimilação e o aproveitamento de cada experiência vivida”. 

A “linguagem orgânica”, de Alex Fausti, é um método de autoconhecimento por meio de uma atitude de amorosidade, no qual se desenvolve uma nova percepção, tradução e ressignificação das experiências individuais.  Nara Keiserman, professora de teatro e atriz,  nomeia estas práticas como “alternativas, no sentido lato da palavra: que oferecem uma alternativa – rica e eficiente de metodologia pedagógica na formação do ator” . Seu trabalho na Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio, está voltado para a “pedagogia do trabalho corporal do ator” (idem), na qual “a corporeidade é considerada a partir da obra de determinados encenadores-pedagogos [Delsarte, Stanislavski, Meierhold, Laban, Artaud, Grotowski, Barba e Lehmann], colocada em confronto com saberes advindos de disciplinas não vinculadas ao Teatro” (ibidem).

A cena constituída a partir desta pesquisa é coerente com ela. Vemos um corpo intenso e vivo se movimentando com delicadeza e teatralidade. Uma voz que se multiplica em sonoridades, palavras e cantos, nos guiando pelo universo humano, demasiadamente humano de Caio Fernando Abreu. Seu vestido vermelho forte desfila várias mulheres, conflitos e prazeres entre uma mesa e duas cadeiras, trazendo à tona a dramaticidade da vida cotidiana. Nara atriz nos envolve num mundo simultaneamente próximo e distante,  pois narra dores de amores, vinganças, delírios e sarcasmos que nos acompanham no dia a dia, mas que se tornam fantásticos no palco.

Um corpo que desenvolve suas percepções, que toma gestos como significantes imediatos, e que não precisa de acrobacias para se comunicar conosco, os espectadores. Somos interpelados pela presença e pela poesia desta presença. A mim me pareceu que seus estudos sobre o corpo e sua linguagem assumem facilmente a teatralidade, e se comunicam de modo profundo com nossa imaginação. Uma montagem singela e poderosa, que faz lembrar que o teatro é antes de tudo a vida intensificada em conjunto com o outro, aquele que aceita e desenvolve o jogo imaginativo.

Espero que a influência da Nara atriz se faça sobre os alunos da Nara professora, e que sua pesquisa e seu teatro contribuam para a compreensão da qualidade e da luz própria do bom teatro. Fui feliz assistindo uma demonstração de paixão aliada a uma sistematização do conhecimento artístico. Obrigada Nara!


quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A Espuma dos Dias



A Espuma dos Dias
 (L’Ecume des Jours) 
125 min.
França/Bélgica - 2013.

Direção: Michel Gondry.
Roteiro: Luc Bossi, baseado no romance de Boris Vian.
Elenco: Romain Duris, Audrey Tatou, Gad Elmaleh,  Omar Sy, Aîssa Maîga, Charlotte Lebon,  Sacha Boundo, Philippe Torreton.

Adaptação do romance de mesmo nome do escritor, dramaturgo, poeta e letrista francês Boris Vian, publicado em 1947. Vian é identificado em sua biografia com o movimento surrealista e com o anarquismo.


O juízo sobre uma obra de arte é sempre histórico, pois está sempre envolvido com os elementos de seu tempo, está sempre marcado pelas escolhas e pelos princípios que seu autor pratica. Para experimentar a reflexão sobre Espuma dos Dias, o filme de 2013, me permitirei embarcar naquilo de surrealismo que existe na minha própria e surreal realidade de pensadora brasileira contemporânea.

O Surrealismo como movimento nasceu e se criou francês, nos anos 1920. Causou variada influência na cultura ocidental, seja nas Artes seja na política que veio a tratar destas. Digo isso porque a partir das experimentações e manifestos dos líderes e dos participantes do movimento surrealista, a irracionalidade passou a ser reconhecida como parte da manifestação artística, e esta forma de percebe-la abriu vários novos formatos de produção e de análise. Ao preconizar a luta contra o domínio da razão, a liberação do inconsciente e a busca da super-realidade, a realidade além da realidade imediata, o surrealismo provocou estudos e experiências sobre a mente, o raciocínio, a imaginação e a sentimentalidade. Nomes como André Breton, Salvador Dali, Guillaume Apollinaire, Antonin Artaud, Luis Buñel e René Magritte são parte do grupo de artistas e pensadores que buscou nas teorias psicanalíticas e no inconsciente noções e conceitos para entender e ampliar a atividade criativa. Este grupo influenciou fortemente seus pares, envolvidos ou não com o movimento, e a modernidade.

Boris Paul Vian, viveu e se comprometeu com as ideias e experiências dos surrealistas, até sua morte em 1959. Estabeleceu relações com Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, a partir das quais participou da equipe de editores da revista Temps Modernes  (Tempos Modernos), fundada em 1945. Sua produção literária foi publicada pelas Editions Gallimard, mas não se tornaram grandes sucessos de venda. A reedição de seu livro pela editora Cosacnaify, em 2013, celebra uma redescoberta do autor.

Cinema e literatura tem um longo percurso de interseções, mas nem de longe um tenta ser fiel tradutor da outra. Se mantém independentes e dão suporte a obras geniais e medíocres quase na mesma medida. Em Espuma dos Dias, a combinação é poderosa, intensa e sedutora. A pequena história de dois amantes que se veem frente a frente com a doença de uma e a tortura psicológica de outro por causa das despesas excessivas, aborda fidelidade, amizade e loucura, como elementos presentes no amor, nos relacionamentos afetivos e na vida moderna. O filme ainda aponta o consumismo, a medicina, a religiosidade e trabalho como elementos de uma cartografia da dor e do desgaste emocional do ser humano da época moderna.

Colin e Chloé se apaixonam. Ele é rico, ela não é. Vivem um delicioso romance rodeado de jogos de sedução, de passeios românticos e de uma felicidade simples. Na lua de mel Chloé adoece, e dai em diante toda a fortuna e toda a vida de Colin se concentram em tentar sua cura. O principal remédio de Chloé são as flores, as quais são trazidas em largas braçadas para seu quarto, na tentativa de fazer a flor que se instaurou no seu pulmão sair de lá. Nicolas, o amigo, cozinheiro, motorista e administrador da fortuna de Colin, vive em conjunto o desfazimento dos espíritos que sofre o casal, até que o marido o obriga a afastar-se. O apartamento colorido, musical e iluminado de Colin vai se acinzentando, diminuindo e se desfazendo na mesma medida em que a doença vai secando o corpo de Chloé. No momento da morte da amada, Colin está totalmente miserável, e o enterro se dá em vala comum e sem rituais de despedida, pois a igreja só faz enterros decentes para quem pode paga-los. Nicolas e Isis, os amigos, estão ao seu lado no último momento. Eis o romance.

Em meio a símbolos do capitalismo, como roupas de marcas famosas, vinhos e automóveis incríveis, a comida surge como uma distinção dos afortunados deste sistema. Nicolas é um cozinheiro de mão cheia, que faz uma comida viva que modifica o espírito de seu senhor. As imagens de comidas vivas, em movimento constante, coloridas e fartas, enchem os olhos... Ao final de cada refeição, e até o meio do filme são muitas, toda a louça, comida que resta, talheres e forros de mesa são jogados no lixo. Nada é reutilizado, pois são quebrados e os cacos são despejados em tubos processadores. É possível ler o consumismo e sua poderosa influência sobre nós nestas ações, na tranquilidade que temos em transformar qualquer coisa em lixo a qualquer momento, sem problemas de consciência. Mesmo quando a pobreza se instala na vida de Colin, os restos continuam indo para o lixo.

A medicina é caríssima. O médico dá seus veredictos de morte por altos preços. Receita remédios que podem matar, mas que devem ser experimentados para que a pesquisa sobre a cura avance. Enxerga o animal no corpo, mas despreza os sentimentos, e isso para se manter racional e capaz de aplicar os tratamentos mais grotescos, com vistas a uma possível cura. E quando nada mais funciona, abandona a paciente. Simples assim.

A igreja serve aos interesses de seus prelados, principalmente os materiais e financeiros. Tudo pode mudar a qualquer momento e sem prévio aviso, pois eles são aqueles que se comunicam com o divino. Sabem das coisas, e ponto final. Se tem como pagar, tudo será feito. Se não tem, que se contente com uma mínima ação cruel. O casamento de Colin e Chloé começa com a disputa de uma corrida até o altar, pois só poderá se casar o par que for vitorioso. Só as vitórias interessam aos padres. À parte a ironia extrema, podemos localizar na alegoria do filme uma instituição que cobra altos preços por cada um dos rituais que criou para uma comunidade, e uma comunidade que os pratica sem exame e com medo de “não ir para o céu”, como conhecemos no mundo em que vivemos. A religiosidade não ultrapassa os meros atos automatizados, que conferem distinção social aos seus praticantes sem, contudo, oferecer verdadeiro conforto espiritual.

O trabalho, este é o jugo medonho do ser humano moderno. É humilhante, desgastante e mata. Ocupa todas as horas úteis do dia, destrói a inteligência e oferece uma remuneração ridícula. Mas é impossível viver sem ele. Trabalhar gasta quase tanto dinheiro quanto produz. Todos o odeiam, mas se submetem a ele para tentar alcançar seus objetivos no mundo, como salvar sua amada, no caso de Colin. Torna tudo pequeno e sem importância, pois toma todo o tempo e toda a energia das pessoas, transformando-as em meros bonecos executores de tarefas. Alguma semelhança com fatos reais?

Mas existem as festas! Na primeira parte do filme, quando tudo está bem e leve, as festas são uma constante: movimentadas, fartas e com muita dança. Dançar é também uma distinção. Fazer da festa um momento de êxtase, é uma obrigação!

As imagens surreais de Espuma dos Dias lembram que o cinema não precisa ser documental nem naturalista para estimular a imaginação. Que pode fazer experimentos tecnológicos sobre a imagem, e com isso proporcionar visões simbólicas do mundo e de nós mesmos. As máquinas, a comida, a dança, os objetos deste filme podem passar por exageros loucos demais, ou podem nos levar a pensar na necessidade de delirar! A arte está para nos instigar, nos provocar, nos irritar, nos tirar da mesmice dos dias... O cinema de Michel Gondry aborda a imagem como suporte da manifestação artística do cinema: até onde a tecnologia pode nos proporcionar diversão e susto? Utilizar a capacidade do cinema de não ser a vida, de mostrar uma vida outra, códigos outros de relação com o outro, é fazer arte do cinema, é se desprender da televisão, da publicidade e da própria vida. É um modo de nos lembrar que nós inventamos o que somos e, portanto, podemos desinventar...

A Espuma dos Dias deveria ser exibido nas escolas de ensino médio, comentado e desconstruído pelos professores de arte, de história, de ciências... para inserir a invenção da realidade na discussão da vida, que é papel da educação escolar fazer. E deve ser visto com olhos joviais, com corpo relaxado, com vontade de rir e de chorar, de não ser sério, de curtir um momento de hiato.

domingo, 21 de julho de 2013

SUBO PARA ESQUECER O QUE DEBAIXO JÁ NÃO CONSIGO VER



Espetáculo Cortejo
Carabina Cultural (MG)

Direção Geral: Carlos Canela
Direção de Produção: Cris Gil
Preparação Corporal e Assistência de Direção: Fábio Furtado
Direção de Arte: Ricca
Coordenador Técnico: Bruno Cerezoli
Trilha Sonora: Sérgio Pererê
Elenco: Diego dos Santos, Fábio Schmidt, Fernanda Flores, Frederico Alves, Lissandra Guimarães, Pablo Barcelos, Ricardo Righi e Suzana Markus.

O roteiro se baseia no processo de evolução do homem através da história, partindo de um ser completo, em relação harmônica com a natureza, até o ser humano moderno, limitado, reprimido e cada vez mais distante de si. O espetáculo apresenta “fases” que vão estabelecendo limites para esse homem que pretende viver em sociedade. E essas fases são: Busca de sobrevivência / alimentos; Guerras/ limites e territórios; Religiões/ punição divina/ abstinência e pudor; Moral, Regras e Limites/ comportamentos sociais; Etiqueta e Estética/ moldar o comportamento; Leis, Poder e a Autoridade.” (Do Prezi divulgado na rede internet)



Um cortejo de imagens e provocações, que invade a noite, sim, a noite, para projetar imagens desconexas e poéticas. De um caminhão barulhento, parte de uma metáfora inteligente sobre o que é a carga pesada que os corpos contemporâneos carregam atrás de si, e dele surgem imagens que compõem um dicionário de encantamentos para os olhos.

O cortejo se desloca e define lugares de parada, nos quais são cultuadas as imagens das fases eleitas pelo autor como emblemáticas da cultura que nos atravessa. Começando pela busca e conquista do alimento, vemos desfilar diante de nossos olhos frutas, flores e o fogo, nos levando a memórias ancestrais. Os atores e atrizes deslocam-se em figuras geométricas junto de nós, articulando um conflito entre o desejo e a necessidade. Objetos manipuláveis formam superfícies de reflexão, nas quais as imagens passeiam, preenchendo o espaço. A vida que emana daqueles corpos em atuação, a intensidade que são capazes de imprimir àquele momento e, acima, de tudo, a inumanidade de suas presenças, forçam uma atenção e despertam uma dúvida, que encantam o olhar e o pensamento.

O fogo mudou  a face do mundo, e o mundo passou a se reunir em torno daqueles que podiam controla-lo de alguma forma. O culto e a divindade passaram a ocupar o espaço do diálogo, e os atores e atrizes nos levam em busca de uma atitude, de uma reflexão, de uma decisão sobre qual a religião que sobra depois da disputa pelo poder. Qual religião consegue atingir o âmago de nossas almas, e como aquele teatro pode nos confundir... eis a dúvida que se intensifica. Cheguei a me perguntar qual o objetivo daquele desfile de imagens duras, de guerras e de atos criminosos, homicídios em massa, fingimento e manipulação ideológica. Mas a arte não tem de responder a perguntas... talvez, seja seu papel fazer muitas, muitas perguntas...

Depois da guerra e da imposição do comportamento machista, mesquinho e avarento, nos vemos diante de uma coleção de imagens piegas, do tipo “retrato da mamãe”. Será que de tão maquinizados, de tanto conviver com o mundo tridimensional, com o fora do planeta e com o extremamente pequeno só visível pelas máquinas de aumento da capacidade de visão, nos tornamos românticos? Embora as palavras, os textos orais, que fazem parte do cortejo não sejam lineares, a inserção da palavra de ordem dos anos 1970, “resista”, destoa da aura futurista que até então se desenvolvia aos nossos olhos. A palavra traiu a imagem. Se fez ilustrativa e ingênua.

Um espetáculo para a rua, que realmente se realiza na rua, com sua iluminação, com seu calçamento, com suas paredes e sonoridade irritante. Um projeto de inserção de imagens no cotidiano de uma rua qualquer, e a possibilidade de ler a união entre estes elementos de maneira provocadora. Este cortejo incita à discussão. Não esclarece ideias, e poderia ter se mantido de fora de posicionamentos contra e/ou a favor de comportamentos, poderia ter se mantido provocador, mas opta por militar de modo hippie ao final. Lembra uma passeata dos anos 1970, onde o rock, as drogas e o sexo eram mais importantes que a ocupação do espaço público.

É, sem  dúvida, uma realização cênica de grande porte. As ideias cênicas tem intensidade e mudam a cara da rua. Os atores se mostram fortes, seus movimentos desenhados se comunicam com nosso pensamento e com nossos sentimentos. As imagens projetadas são inteligentes, em sua maioria, mas resvalam numa ingenuidade publicitária em vários dos quadros. Tudo isso poderia ser marcante e inspirador, não fosse o final romântico... Insistir na ideia da resistência soa como um apelo ao passado. Um passado que não deve voltar, pois não seremos nunca mais os pobres seres humanos submetidos à natureza.

Um espetáculo que traz em si a modernidade, mas que remete a seres humanos pré-modernos. Por que será que a arte da imagem deste encenador se pautou pela articulação publicitária? Qual terá sido seu pensamento? Na cena, a imagem pode desenvolver outros caminhos que não o da demonstração e sugerir novas possibilidades para o pensamento? Outros espetáculos já o conseguiram. A opção por ícones típicos do mundo da promoção, da venda e do consumo, embora coerente com a proposta de enxergar o mundo em que se vive, não avança na sua percepção, somente o demonstra. Talvez alguns espectadores tenham se movido de seus lugares de conforto, como observadores do mundo; lugar em que foram colocados, também, pela publicidade. Mas a maioria, de acordo com seus comentários, viu mais do mesmo, e não se sentiu impelido a refletir... Saiu do cortejo como entrou: sem ideias novas.