Cia Contém Glúten / Brasília-DF
Criação Coletiva
Direção: Júlia Gunesch
Atores bailarinos: Paulo Victor Gandra, Haila Beatriz e
Rebeca Castelo Branco
Músicos: Lucas Muniz e Isabella Pina
Iluminação: Ana Luiza Quintas e Marcelo Augusto
Produção: Isabella Pina;
“O espetáculo se dá em uma padaria e conta o
caso de amor entre três personagens: duas mulheres que lutam pelos suspiros e
amassos de um cobiçado padeiro. A paixão e o jogo de interpretação bem-humorada
são traduzidos fielmente pelo tango ao vivo, entoado por um acordeão e um
cajón.”
(texto
do release)
A possibilidade de experimentação é um dos maiores ganhos de
um curso profissionalizante de teatro, como o que as universidades podem
proporcionar. “Amassa” é fruto da possibilidade de buscar e de realizar
processos criativos no ambiente formativo. Todas as visões que ele sugere,
tanto do ser humano quanto do teatro, trazem em si o aspecto da experimentação
e da descoberta.
Inicialmente, o
cenário é intenso! Cheio de farinha e de pães causa sensação de sujeira, de
bagunça, de desperdício, mas também de vida, de criação, de dar-se ao outro. O
trabalho de fabrico de pães é uma doação, mesmo na perspectiva do seu comércio,
pois o pão é o alimento primeiro. Na sua simplicidade, a mistura de farinha,
água e sal, atravessou pelo menos seis séculos e continua presente em mesas
ricas e pobres. Seu significado holístico é de positividade, prosperidade e
harmonia. A padaria onde os personagens se atiram numa dura disputa, mistura,
ela mesma, as dores e as riquezas que o amor e o sexo podem oferecer à vida.
Em seguida, o tango. A mescla de paixão, sensualidade,
agressividade, tristeza. A submissão da mulher à força do parceiro que a
desloca pelo chão. Propício ao contexto em que se colocam as duas mulheres em
cena, o tango é um texto em “Amassa!”. Poderia ter se tornado o texto, no
sentido de que a dança e a escolha das melodias poderia ter acentuado a
disputa, poderia ter substituído falas, poderia ser o próprio conflito. Mas
esta é uma opinião minha. O grupo desenvolveu um processo de criação de passos
a partir da coreografia tradicional do tango, juntando elementos de humor e de
atuação dramática, o que colore e diverte. Mas também incita à irritação: a
submissão na dança leva a pensar na submissão da mulher à sociedade machista.
Este particular, do tratamento da submissão, é sumamente
curioso. Sabe-se que nos submetemos a algo ou alguém se não conhecemos outras
possibilidades ou se queremos. Que uma submissão pode ser rompida a qualquer
momento, desde que optemos por isto. Mas que pode gerar prazer, ser
conveniente, e, até mesmo, ser de mão dupla. Pois estas características surgem
todas em “Amassa!”. O homem é totalmente dominado pelo processo de sedução
continuada que cada mulher desenvolve, cada uma com suas armas. Não consegue se
decidir e vive dividido entre as duas, entre as noites e os corpos que ambas
lhe oferecem. As mulheres são dominadas pela disputa, a ponto de se submeterem
a papéis inconcebíveis para a mulher pós-moderna. Lutam entre si, se
descabelam, se ofendem, torturam-se na intimidade e na solidão. Mas não saem da
disputa. Estão submetidas à necessidade de vencer. Muito mais que de amar ou
praticar o sexo.
O final expressionista traz uma pergunta: as mulheres matam e
comem o homem. Somos incapazes de conviver com aquilo que não podemos dominar?
Há quase uma ingenuidade na massa de “Amassa!”, provinda,
talvez, dos 20 anos de seus criadores. Todas as ações improvisadas em seus
ensaios parecem ter vindo para a cena, enchendo o palco de repetições. Mas as
repetições não são conscientes, o que as torna vazias. Os tangos escolhidos são
muito conhecidos, e se tornam música mais que texto, pois nos trazem memórias
ao invés de nos fazer mergulhar na angústia daqueles seres humanos, presos em sua
submissão ao medo da derrota. Quando a canção consegue se esvaziar de
significados imediatos, como em cenas nas quais é acelerada ou excessivamente
alongada, somos tomados na plateia por uma sensação intensa e dolorosa. Quais
as dores íntimas daqueles seres humanos subjugados e infelizes. O patético das
situações se engrandece e podemos suspirar sem medo... sim, no fundo somos algo
tolos quando disputamos o interesse de alguém.
Em sua defesa, além da própria força de sua experimentação cênica, “Amassa!” mostra elementos
importantes da performance arte, como atitudes e ações que transparecem estar
ligadas às vidas individuais de seus criadores... Uma das atrizes tem seu
cabelo crespo e grande transformado em vassoura, como, talvez, ela tenha ouvido
centenas de vezes durante a infância e a adolescência. Contudo, continua lindo
e intenso, assumido e feminino. Os longuíssimo braços e pernas da outra atriz
são enfatizados pelo figurino, e por movimentos e ações que os tornam
verdadeiros galhos de uma imensa e magra árvore-mulher. Sim, ela também deve ter
ouvido várias vezes que se parecia com um “vara-pau”... Ou não. O fato é que
estas características e a forma irônica como são usadas intensificam o poder de
enervação que o espetáculo desenvolve. E, me parece, este mesmo é o objetivo de
uma cena: tirar as pessoas de seu estado de conforto.
“Amassa!” transpira energia jovem, submete o pensamento a uma
série de dúvidas e pode despertar a raiva. Mas, também, é grandioso no seu
apelo ao corpo como espaço de comunicação com
espectador, é corajoso na sua busca de envolver teatro, dança e música em
ações cênicas contundentes e, mais que tudo, para satisfação desta que lhes
escreve, proporciona a chance de fazer teatro para o corpo de um espectador que
está anestesiado pelo excesso de mediações das suas relações com o mundo. Por
tudo isto, vale a pena ser visto.