segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Amassa!



Cia Contém Glúten / Brasília-DF
Criação Coletiva
Direção: Júlia Gunesch
Atores bailarinos: Paulo Victor Gandra, Haila Beatriz e Rebeca Castelo Branco
Músicos: Lucas Muniz e Isabella Pina
Iluminação: Ana Luiza Quintas e Marcelo Augusto
Produção: Isabella Pina;

“O espetáculo se dá em uma padaria e conta o caso de amor entre três personagens: duas mulheres que lutam pelos suspiros e amassos de um cobiçado padeiro. A paixão e o jogo de interpretação bem-humorada são traduzidos fielmente pelo tango ao vivo, entoado por um acordeão e um cajón.”
(texto do release)


A possibilidade de experimentação é um dos maiores ganhos de um curso profissionalizante de teatro, como o que as universidades podem proporcionar. “Amassa” é fruto da possibilidade de buscar e de realizar processos criativos no ambiente formativo. Todas as visões que ele sugere, tanto do ser humano quanto do teatro, trazem em si o aspecto da experimentação e da descoberta.

 Inicialmente, o cenário é intenso! Cheio de farinha e de pães causa sensação de sujeira, de bagunça, de desperdício, mas também de vida, de criação, de dar-se ao outro. O trabalho de fabrico de pães é uma doação, mesmo na perspectiva do seu comércio, pois o pão é o alimento primeiro. Na sua simplicidade, a mistura de farinha, água e sal, atravessou pelo menos seis séculos e continua presente em mesas ricas e pobres. Seu significado holístico é de positividade, prosperidade e harmonia. A padaria onde os personagens se atiram numa dura disputa, mistura, ela mesma, as dores e as riquezas que o amor e o sexo podem oferecer à vida.

Em seguida, o tango. A mescla de paixão, sensualidade, agressividade, tristeza. A submissão da mulher à força do parceiro que a desloca pelo chão. Propício ao contexto em que se colocam as duas mulheres em cena, o tango é um texto em “Amassa!”. Poderia ter se tornado o texto, no sentido de que a dança e a escolha das melodias poderia ter acentuado a disputa, poderia ter substituído falas, poderia ser o próprio conflito. Mas esta é uma opinião minha. O grupo desenvolveu um processo de criação de passos a partir da coreografia tradicional do tango, juntando elementos de humor e de atuação dramática, o que colore e diverte. Mas também incita à irritação: a submissão na dança leva a pensar na submissão da  mulher à sociedade machista.

Este particular, do tratamento da submissão, é sumamente curioso. Sabe-se que nos submetemos a algo ou alguém se não conhecemos outras possibilidades ou se queremos. Que uma submissão pode ser rompida a qualquer momento, desde que optemos por isto. Mas que pode gerar prazer, ser conveniente, e, até mesmo, ser de mão dupla. Pois estas características surgem todas em “Amassa!”. O homem é totalmente dominado pelo processo de sedução continuada que cada mulher desenvolve, cada uma com suas armas. Não consegue se decidir e vive dividido entre as duas, entre as noites e os corpos que ambas lhe oferecem. As mulheres são dominadas pela disputa, a ponto de se submeterem a papéis inconcebíveis para a mulher pós-moderna. Lutam entre si, se descabelam, se ofendem, torturam-se na intimidade e na solidão. Mas não saem da disputa. Estão submetidas à necessidade de vencer. Muito mais que de amar ou praticar o sexo.

O final expressionista traz uma pergunta: as mulheres matam e comem o homem. Somos incapazes de conviver com aquilo que não podemos dominar?

Há quase uma ingenuidade na massa de “Amassa!”, provinda, talvez, dos 20 anos de seus criadores. Todas as ações improvisadas em seus ensaios parecem ter vindo para a cena, enchendo o palco de repetições. Mas as repetições não são conscientes, o que as torna vazias. Os tangos escolhidos são muito conhecidos, e se tornam música mais que texto, pois nos trazem memórias ao invés de nos fazer mergulhar na angústia daqueles seres humanos, presos em sua submissão ao medo da derrota. Quando a canção consegue se esvaziar de significados imediatos, como em cenas nas quais é acelerada ou excessivamente alongada, somos tomados na plateia por uma sensação intensa e dolorosa. Quais as dores íntimas daqueles seres humanos subjugados e infelizes. O patético das situações se engrandece e podemos suspirar sem medo... sim, no fundo somos algo tolos quando disputamos o interesse de alguém.

Em sua defesa, além da própria força de sua experimentação cênica, “Amassa!” mostra elementos importantes da performance arte, como atitudes e ações que transparecem estar ligadas às vidas individuais de seus criadores... Uma das atrizes tem seu cabelo crespo e grande transformado em vassoura, como, talvez, ela tenha ouvido centenas de vezes durante a infância e a adolescência. Contudo, continua lindo e intenso, assumido e feminino. Os longuíssimo braços e pernas da outra atriz são enfatizados pelo figurino, e por movimentos e ações que os tornam verdadeiros galhos de uma imensa e magra árvore-mulher. Sim, ela também deve ter ouvido várias vezes que se parecia com um “vara-pau”... Ou não. O fato é que estas características e a forma irônica como são usadas intensificam o poder de enervação que o espetáculo desenvolve. E, me parece, este mesmo é o objetivo de uma cena: tirar as pessoas de seu estado de conforto.

“Amassa!” transpira energia jovem, submete o pensamento a uma série de dúvidas e pode despertar a raiva. Mas, também, é grandioso no seu apelo ao corpo como espaço de comunicação com  espectador, é corajoso na sua busca de envolver teatro, dança e música em ações cênicas contundentes e, mais que tudo, para satisfação desta que lhes escreve, proporciona a chance de fazer teatro para o corpo de um espectador que está anestesiado pelo excesso de mediações das suas relações com o mundo. Por tudo isto, vale a pena ser visto.