quinta-feira, 4 de abril de 2013

A Avaliação da Encenação



  
Os critérios são muitas vezes pouco explícitos e só raramente concernem ao puro valor artístico da produção cênica. Seria preciso então, de fato, determinar o que o evento teatral tem de artístico e como se deveria avalia-lo. Seria preciso igualmente apreciar se a obra se originou de uma experiência autêntica do artista, se ela corresponde ao discurso implícito e à espera de uma época, ou se a inovação que ela representa é superficial e banal como o observa Pierre Gaudibert a propósito das artes plásticas – mas a coisa vale também para o teatro:

Hoje, existe uma confusão entre a inovação real – a da linguagem e dos signos – que encontramos nas grandes criações, que modifica a percepção, as atitudes psíquicas e mentais e uma motivação vanguardista traduzida em modificações superficiais que se querem originais ou provocadoras (‘Conversation sur l’ouevre d’art”, Revue Peuples et Cultures)


A “inovação aceitável” é um critério que o público do teatro ocidental aceitará com facilidade, preocupado como está de, ao mesmo tempo, descobrir uma técnica ou uma mensagem nova e de não ser maltratado demais em suas esperas e seus atos. A tais esperas e resistências ditas “analíticas” que “provêm dos bloqueios afetivos e/ou sexuais”, resistências “desencadeadas por obras que encenam a sexualidade, as pulsões, as fantasias sexuais (o surrealismo por exemplo), ou que evocam o trágico, a destruição, a crise e suscitam angústia de desespero” (P. Gaudibert, idem). Além dessas resistências a vencer, a avaliação diz respeito à autenticidade da obra e à experiência humana e artística daqueles que lhe deram nascimento, com o risco de voltar a cair no pântano da psicologia do autor.

 Ou então no discurso sobre o estilo: o estilo de uma encenação de um artista, (encenador, cenógrafo, iluminador ou ator) é sem dúvida possível enumerar algumas características próprias a um artista ou à série de suas criações, características que acabam por constituir uma marca de fábrica ou uma assinatura. Estilística, no entanto muito superficial que faz do estilo um “je-ne-sais-quoi” muito rápido que é apenas uma primeira abordagem tipológica e que é preciso imediatamente complementar – como tentamos fazer aqui – com a análise sistêmica dos componentes da encenação, de seus processos criadores e dos resultados produzidos. “A tentação estilística” conduz a uma outra tentação tão suave quanto: a da crítica normativa dos “erros” da encenação, da localização de suas disfunções ou de suas incoerências.

Inesperada em uma teoria da encenação que se esforça pela objetividade e evita qualquer julgamento de valor, a crítica normativa dos “erros” se aplica a localizar as incoerências e as inconsequências do espetáculo em relação a uma linha de conduta, a uma lógica de conjunto, a princípios implícitos da encenação, em suma, àquilo que às vezes foi nomeado metatexto ou discurso da encenação. Vai se tratar, por exemplo, de estabelecer se o ator permanece fiel a um estilo de jogo ou se o sistema das entradas e das saídas convém ou não às escolhas cenográficas etc. Em suma, qualquer processo novo será examinado em função de seus antecedentes: estaria ele na lógica do que o precede, ou então contradiz as escolhas dramáticas e cênicas, fere o objetivo global ou então abre uma perspectiva nova e voluntariamente assumida? O que sai do quadro proposto é ora um erro da encenação, ora um meio de manter a atenção do espectador em alerta. A encenação se situa sempre entre o caos e a redundância, entre ausência de ordem localizável e sistematicidade pesada demais.  Ela está regida em duas tendências contraditórias: a necessidade de ordem e regularidade, sentida em conjunto pelo encenador e pelo espectador; a tendência à complexificação da mensagem e a sua propriedade auto-organizadora, pois a encenação atual parece com um sistema de auto-organização: “para que um sistema tenha propriedades auto-organizadoras, é preciso que a redundância inicial tenha um valor mínimo, já que essas propriedades consistem em um aumento de complexidade pela destruição de redundâncias” (Henri Atlan, “Entre le cristal et la fumée. Essai sur l’organization du vivant”, Paris: Seuil, 1978). Há, pois, um perigo real em erigir o metatexto em princípio auto-organizador inflexível sem que o menor afastamento da norma possa abrir a encenação a um sentido novo ou aumentado. Em suma, os “erros” podem ser voluntários e arranjados, destinados a manter a atenção do espectador à espreita, eles são muitas vezes o resultado de decisões artísticas ou organizacionais da encenação.

(Patrice Pavis,
A Análise dos Espetáculos, SP: Perspectiva, 2008)
(Trecho)