sexta-feira, 11 de abril de 2014

PR AZ ER



Espetáculo da Cia. Lunera (BH/MG)

Concepção e Dramaturgia: Cia. Luna Lunera
Atuação e codireção: Cláudio Dias, Isabela Paes, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves
Codireção: Zé Walter Albinati
Orientação Dramatúrgica: Jô Bilac
Preparação Corporal: Mário Nascimento
Residência Artística: Roberta Carrieri – Odin Teatret
Pesquisa em Artes Digitais: Trem Chic
Concepção Cenográfica: Ed Andrade
Figurino: Marney Heitmann
Iluminação: Felipe Cosse e Juliano Coelho
Produção Executiva: Talita Braga


A Cia. Luna Lunera foi criada em 2001. (...). Sediada em Belo Horizonte (MG), a Luna Lunera tem realizado inúmeras ações de troca de experiências e democratização do acesso à arte, através de cursos, oficinas, ensaios abertos, bate-papos após os espetáculos e projetos de circulação por cidades fora dos circuitos já estabelecidos. Exercita interlocução com outros grupos brasileiros e do exterior, sendo membro do Teatropeia, coletivo de discussão e criação teatral situado no México.” (Programa do Espetáculo)

O projeto de teatro da Cia. Luna Lunera tem como perspectiva a criação compartilhada. Segundo o texto do programa de PR AZ ER, o diálogo entre criadores, participantes da Companhia ou convidados para cada processo, ou ainda observadores mais descomprometidos e eventuais contudo presentes, tem o poder e o papel de modificar, trazer novas referências, alterar o olhar e o caminho da criação. Sem dúvida, uma opção difícil, pois o fazer e o estar em grupo são, em si mesmos, o desafio de escutar e calar, constante e continuamente. E a criação compartilhada traz consigo, ainda, a responsabilidade da satisfação, por que não dizer do prazer, de cada indivíduo envolvido, que se faz e refaz na troca de prazeres com os parceiros. Delicado processo de aprendizado do respeito mútuo e da flexibilidade de pensamento.

Prazer.... Para Aristóteles: “o ato de um hábito conforme à natureza”. Hábito como “disposição constante”. Para Nietzsche: “sensação de maior potencia”. Para Schopenhauer: “a cessação da dor, conhecido ou sentido apenas através da lembrança do sofrimento ou da privação passada”. Ufa... Interessante lembrar de todas estas constatações se revelando no decorrer do encontro espetacular entre aquelas pessoas inventadas que se trancam em casa e olham o mundo pela janela.

Homens que trazem dores de amor. Homens que trazem uma sensibilidade doce e confusa. Homens que se realizam com pequenos gestos do cotidiano, como cozinhar, manejar uma torneira quebrada, observar o próprio cachorro. Personagens ambíguos na sua inumanidade, na sua infância emotiva, na incerteza dura de ver ou viver o amor, e o prazer. Que, conforme suas naturezas, não deixam de agir dentro de seus hábitos, arraigados e tormentosos. Humanos, que se desequilibram e se reequilibram em função da sua busca individual por algum fragmento de não-dor.

Uma mulher que desliza. Alimenta as fantasias sensuais de si mesma e de todos os homens à sua volta, sem toca-los, sem realiza-las, sem destruí-las. Que insiste nas relações, que não abre mão de tentar, que assume o papel de contemporizar, que guarda seus conflitos dentro de seus saltos altos vermelhos.

Os personagens são desenhados, são suaves, por vezes se parecem tanto com pessoas comuns, que até parece que não é teatro. Os atores mostram tal intimidade com sua persona ficcional que, às vezes, é um pouco assustador vê-los se revelando... Uma sensação de cuidado com aqueles pequenos seres meio desumanos, mas uma sensação agradável de saber que nada pode atingi-los, porque estão protegidos pelo palco. E nós escondidos na plateia. Todos bem guardados por Dioniso, que nos assiste nas nossas angústias e prazeres.

O espaço cênico, grandioso e delicado, nos situa num mundo pequeno e fragmentado. Somos envolvidos por recordações e intensidades, que trazem a juventude, trazem o começo e o fim da vida: poucos elementos para atender a todas as necessidades. E a água sempre presente. Chove fora, pinga dentro, lava e inunda, como os sentimentos de dor e prazer fazem, de modo avassalador  e sem demoras. Poético espaço e poético uso dele. Sua luminosidade é difusa, leve, intimista, como a condensar as sombras que cada um arrasta atrás de si... A plasticidade do espaço cênico completa e retoca cada gesto, cada atitude, cada palavra dos atores. Um casamento: onde não há arestas, elas se revelam e se resolvem na sua própria existência, lembrando que a vida é sonho, não é perfeição cartesiana.

O figurino é inteligente pra caramba! Veste e desveste as personalidades e a ficcionalidade de cada personagem. Plausível e contemporâneo, traz à tona particularidades e fundamentos daquelas criaturas; a teatralidade fica por conta do uso que cada ator faz dele. Tem beleza e tem ternura, tem surpresa e tem elegância. Tem ficção e tem não-ficção. Outro casamento: o que é bom desfila, o que é estranho, se esconde sem desaparecer.

A dramaturgia se baseia na conjugação de monólogos em presença dos outros. Todos parecem falar somente para se ouvir, muitas vezes interrompendo um fluxo de pensamento e de emotividade do outro. É conveniente e belo ver as palavras se embolando, se confundindo, “des-contando”  uma história sem pé nem cabeça, que se revela familiar de vez em quando. É comovente ser tratada como pessoa inteligente, que pode fazer as próprias associações, que como espectadora pode escolher que faceta da história prefere, sem ser conduzida pela linearidade e pela lógica matemática. Me caso demais com esta situação!

Enfim, bom ver a maturidade da Companhia. Bom ver que se arriscam dentro de uma linguagem que vem sendo construída a muitas mãos. Bom que reverenciam seus mestres, Castilho Avelar, Vogel e Belém Machado, com carinho e cuidado. Bom poder ver o teatro que quer se comunicar com as pessoas que somos hoje, na nossa confusão, na nossa incerteza e na nossa necessidade de estar vivo.