Espetáculo da Cia. Lunera (BH/MG)
Concepção e Dramaturgia: Cia. Luna Lunera
Atuação e codireção: Cláudio Dias, Isabela Paes, Marcelo
Souza e Silva e Odilon Esteves
Codireção: Zé Walter Albinati
Orientação Dramatúrgica: Jô Bilac
Preparação Corporal: Mário Nascimento
Residência Artística: Roberta Carrieri – Odin Teatret
Pesquisa em Artes Digitais: Trem Chic
Concepção Cenográfica: Ed Andrade
Figurino: Marney Heitmann
Iluminação: Felipe Cosse e Juliano Coelho
Produção Executiva: Talita Braga
“A
Cia. Luna Lunera foi criada em 2001. (...). Sediada em Belo Horizonte (MG), a
Luna Lunera tem realizado inúmeras ações de troca de experiências e
democratização do acesso à arte, através de cursos, oficinas, ensaios abertos,
bate-papos após os espetáculos e projetos de circulação por cidades fora dos
circuitos já estabelecidos. Exercita interlocução com outros grupos brasileiros
e do exterior, sendo membro do Teatropeia, coletivo de discussão e criação
teatral situado no México.” (Programa do Espetáculo)
O projeto
de teatro da Cia. Luna Lunera tem como perspectiva a criação compartilhada.
Segundo o texto do programa de PR AZ ER, o diálogo entre criadores, participantes
da Companhia ou convidados para cada processo, ou ainda observadores mais
descomprometidos e eventuais contudo presentes, tem o poder e o papel de
modificar, trazer novas referências, alterar o olhar e o caminho da criação.
Sem dúvida, uma opção difícil, pois o fazer e o estar em grupo são, em si
mesmos, o desafio de escutar e calar, constante e continuamente. E a
criação compartilhada traz consigo, ainda, a responsabilidade da satisfação,
por que não dizer do prazer, de cada indivíduo envolvido, que se faz e refaz na
troca de prazeres com os parceiros. Delicado processo de aprendizado do respeito
mútuo e da flexibilidade de pensamento.
Prazer....
Para Aristóteles: “o ato de um hábito conforme à natureza”. Hábito como
“disposição constante”. Para Nietzsche: “sensação de maior potencia”. Para
Schopenhauer: “a cessação da dor, conhecido ou sentido apenas através da
lembrança do sofrimento ou da privação passada”. Ufa... Interessante lembrar de
todas estas constatações se revelando no decorrer do encontro espetacular entre
aquelas pessoas inventadas que se trancam em casa e olham o mundo pela janela.
Homens
que trazem dores de amor. Homens que trazem uma sensibilidade doce e confusa.
Homens que se realizam com pequenos gestos do cotidiano, como cozinhar, manejar
uma torneira quebrada, observar o próprio cachorro. Personagens ambíguos na sua
inumanidade, na sua infância emotiva, na incerteza dura de ver ou viver o amor,
e o prazer. Que, conforme suas naturezas, não deixam de agir dentro de seus
hábitos, arraigados e tormentosos. Humanos, que se desequilibram e se
reequilibram em função da sua busca individual por algum fragmento de não-dor.
Uma
mulher que desliza. Alimenta as fantasias sensuais de si mesma e de todos os
homens à sua volta, sem toca-los, sem realiza-las, sem destruí-las. Que insiste
nas relações, que não abre mão de tentar, que assume o papel de contemporizar,
que guarda seus conflitos dentro de seus saltos altos vermelhos.
Os
personagens são desenhados, são suaves, por vezes se parecem tanto com pessoas
comuns, que até parece que não é teatro. Os atores mostram tal intimidade com
sua persona ficcional que, às vezes, é um pouco assustador vê-los se
revelando... Uma sensação de cuidado com aqueles pequenos seres meio desumanos,
mas uma sensação agradável de saber que nada pode atingi-los, porque estão
protegidos pelo palco. E nós escondidos na plateia. Todos bem guardados por
Dioniso, que nos assiste nas nossas angústias e prazeres.
O espaço cênico, grandioso e delicado, nos situa num mundo pequeno e fragmentado.
Somos envolvidos por recordações e intensidades, que trazem a juventude, trazem
o começo e o fim da vida: poucos elementos para atender a todas as
necessidades. E a água sempre presente. Chove fora, pinga dentro, lava e
inunda, como os sentimentos de dor e prazer fazem, de modo avassalador e sem demoras. Poético espaço e poético uso
dele. Sua luminosidade é difusa, leve, intimista, como a condensar as sombras
que cada um arrasta atrás de si... A plasticidade do espaço cênico completa e
retoca cada gesto, cada atitude, cada palavra dos atores. Um casamento: onde
não há arestas, elas se revelam e se resolvem na sua própria existência,
lembrando que a vida é sonho, não é perfeição cartesiana.
O
figurino é inteligente pra caramba! Veste e desveste as personalidades e a
ficcionalidade de cada personagem. Plausível e contemporâneo, traz à tona
particularidades e fundamentos daquelas criaturas; a teatralidade fica por
conta do uso que cada ator faz dele. Tem beleza e tem ternura, tem surpresa e
tem elegância. Tem ficção e tem não-ficção. Outro casamento: o que é bom desfila,
o que é estranho, se esconde sem desaparecer.
A
dramaturgia se baseia na conjugação de monólogos em presença dos outros. Todos
parecem falar somente para se ouvir, muitas vezes interrompendo um fluxo de
pensamento e de emotividade do outro. É conveniente e belo ver as palavras se
embolando, se confundindo, “des-contando” uma história sem pé nem cabeça, que se revela
familiar de vez em quando. É comovente ser tratada como pessoa inteligente, que
pode fazer as próprias associações, que como espectadora pode escolher que
faceta da história prefere, sem ser conduzida pela linearidade e pela lógica
matemática. Me caso demais com esta situação!
Enfim,
bom ver a maturidade da Companhia. Bom ver que se arriscam dentro de uma
linguagem que vem sendo construída a muitas mãos. Bom que reverenciam seus
mestres, Castilho Avelar, Vogel e Belém Machado, com carinho e cuidado. Bom
poder ver o teatro que quer se comunicar com as pessoas que somos hoje, na
nossa confusão, na nossa incerteza e na nossa necessidade de estar vivo.