quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A Espuma dos Dias



A Espuma dos Dias
 (L’Ecume des Jours) 
125 min.
França/Bélgica - 2013.

Direção: Michel Gondry.
Roteiro: Luc Bossi, baseado no romance de Boris Vian.
Elenco: Romain Duris, Audrey Tatou, Gad Elmaleh,  Omar Sy, Aîssa Maîga, Charlotte Lebon,  Sacha Boundo, Philippe Torreton.

Adaptação do romance de mesmo nome do escritor, dramaturgo, poeta e letrista francês Boris Vian, publicado em 1947. Vian é identificado em sua biografia com o movimento surrealista e com o anarquismo.


O juízo sobre uma obra de arte é sempre histórico, pois está sempre envolvido com os elementos de seu tempo, está sempre marcado pelas escolhas e pelos princípios que seu autor pratica. Para experimentar a reflexão sobre Espuma dos Dias, o filme de 2013, me permitirei embarcar naquilo de surrealismo que existe na minha própria e surreal realidade de pensadora brasileira contemporânea.

O Surrealismo como movimento nasceu e se criou francês, nos anos 1920. Causou variada influência na cultura ocidental, seja nas Artes seja na política que veio a tratar destas. Digo isso porque a partir das experimentações e manifestos dos líderes e dos participantes do movimento surrealista, a irracionalidade passou a ser reconhecida como parte da manifestação artística, e esta forma de percebe-la abriu vários novos formatos de produção e de análise. Ao preconizar a luta contra o domínio da razão, a liberação do inconsciente e a busca da super-realidade, a realidade além da realidade imediata, o surrealismo provocou estudos e experiências sobre a mente, o raciocínio, a imaginação e a sentimentalidade. Nomes como André Breton, Salvador Dali, Guillaume Apollinaire, Antonin Artaud, Luis Buñel e René Magritte são parte do grupo de artistas e pensadores que buscou nas teorias psicanalíticas e no inconsciente noções e conceitos para entender e ampliar a atividade criativa. Este grupo influenciou fortemente seus pares, envolvidos ou não com o movimento, e a modernidade.

Boris Paul Vian, viveu e se comprometeu com as ideias e experiências dos surrealistas, até sua morte em 1959. Estabeleceu relações com Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, a partir das quais participou da equipe de editores da revista Temps Modernes  (Tempos Modernos), fundada em 1945. Sua produção literária foi publicada pelas Editions Gallimard, mas não se tornaram grandes sucessos de venda. A reedição de seu livro pela editora Cosacnaify, em 2013, celebra uma redescoberta do autor.

Cinema e literatura tem um longo percurso de interseções, mas nem de longe um tenta ser fiel tradutor da outra. Se mantém independentes e dão suporte a obras geniais e medíocres quase na mesma medida. Em Espuma dos Dias, a combinação é poderosa, intensa e sedutora. A pequena história de dois amantes que se veem frente a frente com a doença de uma e a tortura psicológica de outro por causa das despesas excessivas, aborda fidelidade, amizade e loucura, como elementos presentes no amor, nos relacionamentos afetivos e na vida moderna. O filme ainda aponta o consumismo, a medicina, a religiosidade e trabalho como elementos de uma cartografia da dor e do desgaste emocional do ser humano da época moderna.

Colin e Chloé se apaixonam. Ele é rico, ela não é. Vivem um delicioso romance rodeado de jogos de sedução, de passeios românticos e de uma felicidade simples. Na lua de mel Chloé adoece, e dai em diante toda a fortuna e toda a vida de Colin se concentram em tentar sua cura. O principal remédio de Chloé são as flores, as quais são trazidas em largas braçadas para seu quarto, na tentativa de fazer a flor que se instaurou no seu pulmão sair de lá. Nicolas, o amigo, cozinheiro, motorista e administrador da fortuna de Colin, vive em conjunto o desfazimento dos espíritos que sofre o casal, até que o marido o obriga a afastar-se. O apartamento colorido, musical e iluminado de Colin vai se acinzentando, diminuindo e se desfazendo na mesma medida em que a doença vai secando o corpo de Chloé. No momento da morte da amada, Colin está totalmente miserável, e o enterro se dá em vala comum e sem rituais de despedida, pois a igreja só faz enterros decentes para quem pode paga-los. Nicolas e Isis, os amigos, estão ao seu lado no último momento. Eis o romance.

Em meio a símbolos do capitalismo, como roupas de marcas famosas, vinhos e automóveis incríveis, a comida surge como uma distinção dos afortunados deste sistema. Nicolas é um cozinheiro de mão cheia, que faz uma comida viva que modifica o espírito de seu senhor. As imagens de comidas vivas, em movimento constante, coloridas e fartas, enchem os olhos... Ao final de cada refeição, e até o meio do filme são muitas, toda a louça, comida que resta, talheres e forros de mesa são jogados no lixo. Nada é reutilizado, pois são quebrados e os cacos são despejados em tubos processadores. É possível ler o consumismo e sua poderosa influência sobre nós nestas ações, na tranquilidade que temos em transformar qualquer coisa em lixo a qualquer momento, sem problemas de consciência. Mesmo quando a pobreza se instala na vida de Colin, os restos continuam indo para o lixo.

A medicina é caríssima. O médico dá seus veredictos de morte por altos preços. Receita remédios que podem matar, mas que devem ser experimentados para que a pesquisa sobre a cura avance. Enxerga o animal no corpo, mas despreza os sentimentos, e isso para se manter racional e capaz de aplicar os tratamentos mais grotescos, com vistas a uma possível cura. E quando nada mais funciona, abandona a paciente. Simples assim.

A igreja serve aos interesses de seus prelados, principalmente os materiais e financeiros. Tudo pode mudar a qualquer momento e sem prévio aviso, pois eles são aqueles que se comunicam com o divino. Sabem das coisas, e ponto final. Se tem como pagar, tudo será feito. Se não tem, que se contente com uma mínima ação cruel. O casamento de Colin e Chloé começa com a disputa de uma corrida até o altar, pois só poderá se casar o par que for vitorioso. Só as vitórias interessam aos padres. À parte a ironia extrema, podemos localizar na alegoria do filme uma instituição que cobra altos preços por cada um dos rituais que criou para uma comunidade, e uma comunidade que os pratica sem exame e com medo de “não ir para o céu”, como conhecemos no mundo em que vivemos. A religiosidade não ultrapassa os meros atos automatizados, que conferem distinção social aos seus praticantes sem, contudo, oferecer verdadeiro conforto espiritual.

O trabalho, este é o jugo medonho do ser humano moderno. É humilhante, desgastante e mata. Ocupa todas as horas úteis do dia, destrói a inteligência e oferece uma remuneração ridícula. Mas é impossível viver sem ele. Trabalhar gasta quase tanto dinheiro quanto produz. Todos o odeiam, mas se submetem a ele para tentar alcançar seus objetivos no mundo, como salvar sua amada, no caso de Colin. Torna tudo pequeno e sem importância, pois toma todo o tempo e toda a energia das pessoas, transformando-as em meros bonecos executores de tarefas. Alguma semelhança com fatos reais?

Mas existem as festas! Na primeira parte do filme, quando tudo está bem e leve, as festas são uma constante: movimentadas, fartas e com muita dança. Dançar é também uma distinção. Fazer da festa um momento de êxtase, é uma obrigação!

As imagens surreais de Espuma dos Dias lembram que o cinema não precisa ser documental nem naturalista para estimular a imaginação. Que pode fazer experimentos tecnológicos sobre a imagem, e com isso proporcionar visões simbólicas do mundo e de nós mesmos. As máquinas, a comida, a dança, os objetos deste filme podem passar por exageros loucos demais, ou podem nos levar a pensar na necessidade de delirar! A arte está para nos instigar, nos provocar, nos irritar, nos tirar da mesmice dos dias... O cinema de Michel Gondry aborda a imagem como suporte da manifestação artística do cinema: até onde a tecnologia pode nos proporcionar diversão e susto? Utilizar a capacidade do cinema de não ser a vida, de mostrar uma vida outra, códigos outros de relação com o outro, é fazer arte do cinema, é se desprender da televisão, da publicidade e da própria vida. É um modo de nos lembrar que nós inventamos o que somos e, portanto, podemos desinventar...

A Espuma dos Dias deveria ser exibido nas escolas de ensino médio, comentado e desconstruído pelos professores de arte, de história, de ciências... para inserir a invenção da realidade na discussão da vida, que é papel da educação escolar fazer. E deve ser visto com olhos joviais, com corpo relaxado, com vontade de rir e de chorar, de não ser sério, de curtir um momento de hiato.

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