terça-feira, 21 de maio de 2013

Ifigênia




Cia. Elevador de Teatro Panorâmico (São Paulo/SP)

Direção: Marcelo Lazzaratto
Assistente de Direção: Thomaz Kardos
Texto: Cássio Pires
A partir de “Ifigênia em Áulis”, de Eurípedes
Elenco: Carolina Fabri, Daniela Alves, Gabriel Miziara, Manfrini Fabretti, Maurício Schneider, Pedro Haddad, Rodrigo Spina, Sofia Botelho e Wallyson Mota.
Belo Horizonte/MG
2013


A Cia. Elevador de Teatro Panorâmico é “um núcleo permanente de investigação em linguagem teatral”, segundo o programa de seu espetáculo. Completa 13 anos de existência em 2013. Procura em seu trabalho de pesquisa e criação “dialogar diretamente com o homem contemporâneo”, também segundo suas próprias palavras. Mantém um teatro, o Espaço Elevador, em São Paulo, onde desenvolve programação artística e formativa na área de Artes Cênicas.

Ifigênia” é o resultado de uma pesquisa prática de atuação e encenação, motivada pela imagem do “mar e suas ondas”, segundo o diretor, também no programa do espetáculo. “O mar como metáfora do todo, do arquetípico, do coletivo. A onda como metáfora da parte, da subjetividade, do indivíduo”. Esta imagem-mote-força motriz foi desenvolvida por meio da pesquisa do diretor e do grupo, denominada “Campo de visão”. Trata-se de uma metodologia que  envolve o treinamento para o ator e uma poética para a elaboração de espetáculos. Está sistematizada no livro “Campo de Visão. Exercício e Linguagem Cênica”, de Marcelo Lazzaratto, Editora Associação e Arte, SP, 2011.

Campo: um contexto de relações que se estruturam e objetivam na forma concreta de interações. E como uma rede, aproxima noções e elementos, tempos, preenchimentos e vácuos. Cada um dos instantes é uma relevância, e a imanência desloca os sentidos, para capta-los. Em “Ifigênia” o campo molhado do mar subleva o poema de nossas almas em dúvida, seja porque a escolha do pai por ser fiel ao ser rei, nos coloca em cheque. Seja porque a escolha da filha por ser cidadã, nos ameaça os pensamentos modernos. O campo em que se move este “Ifigênia” encorpa uma noção de teatro denso, ritual e extensivo. Podemos deslizar o olhar e ser encharcados de visões delicadas de movimento, ou de cores, ou de luz, ou de vazios. Podemos apurar os ouvidos e enxergar o mundo em que estamos e que se parece com outros já mortos. Podemos investigar as reações do coro, e nos propormos a nos perguntar o que faríamos diante de tamanha decisão.

Na tragédia de Eurípedes, “Ifigênia em Áulis” de 408a.C., vemos um pai atrair sua filha para a morte, prometendo-lhe uma festa de noivado. Atrai um suposto noivo que pode interessar à sua filha como marido, um guerreiro reconhecido na comunidade. Faz sua esposa acreditar em sua intenção benevolente e amorosa. À chegada da filha, anuncia o verdadeiro intento da viagem: sacrifica-la à deusa Palas Atena para alcançar a vitória na guerra, e, assim, salvar seu reino, seus habitantes, suas vidas. A filha e a esposa, tomadas de angústia e horror, o rejeitam. Em suas lamentações encontram a motivação de princesa e de rainha, e refletem sobre o sacrifício para salvar seu povo. Se apegam à hierarquia, aceitam a morte e a ausência como parte de seus papéis de líderes, materiais e espirituais, de seu povo. No momento do sacrifício, uma corsa rodeia o corpo inerte da princesa, e ao pai lhe parece que a deusa lhe deu um novo corpo para seguir vivendo. A guerra é vencida.

A visão da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico coteja a tragédia helênica com a tragédia pós-moderna: o que é o público? O que é o privado? Quem tem direito de poder? A quem cabem as escolhas ? Um belo espetáculo, de teatralidade viva e pungente, delicado, intenso. Toma o tempo da reflexão e carrega mente e coração por um instante de suspensão coletivo. Nada a temer, é teatro não serão mortas as atrizes princesas. Não seremos cúmplices de um sacrifício sangrento. Sim, seremos ungidos pelo suor daqueles corpos concentrados e entusiasmados com nossa presença, diante dos deuses. Que nos narram o desfecho daquela catártica circunstância. Ouvimos e sentimos cada palavra, cada melodia, cada intervalo que nos guia pelo universo trágico. E nos mantemos no tempo pós-moderno, podendo vê-lo e domina-lo por alguns minutos. Fascinante!

O movimento desenhado que nos ampara no palco, a nós que nos mantemos sentados e fixados na mesma posição silenciosa, é misterioso... Ao lermos o programa do espetáculo, podemos entrever o princípio que o rege: “os participantes só podem movimentar-se quando algum movimento gerado por qualquer ator estiver ou entrar em seu campo de visão”. Perfeito! A cada ação se correspondem reações em intensidade e quantidade inesperadas, e a nossa afetividade vai sendo instaurada e alimentada no decorrer das imagens e atmosferas que surgem como por encanto. Os atores se colocam em cena com respeito e cuidado, observam-se com atenção e desvelo, buscam um ritmo que alimente a magia. A música acentua ligações, promove impactos, faz imergir e escapar do enredado que se forma entre palco e plateia. Bonito de ver, de observar, de captar, de lembrar.

Ifigênia” traz a marca de uma companhia, de dedicação, perspicácia, poesia, de teatralidade. Sua simplicidade, harmonia e intensidade são deliciosamente estimulantes. Que venham sempre ventos, céus e mares a serem assim navegados, evoé! E obrigada Pierre Bourdieu, por me inspirar para escrever este texto.

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