Acesse: www.guiadasartes.mg.
segunda-feira, 28 de julho de 2014
Guia das Artes
O GUIA DAS ARTES é uma publicação que mapeia os principais equipamentos culturais de Belo Horizonte e Região Metropolitana. O Guia ganha versão online pelo site www.guiadasartes.mg.gov.br , que também foi trabalhado para a versão mobile e leva em consideração o potencial de acessos virtuais que o Guia pode ter.
Acesse: www.guiadasartes.mg.gov.br
Acesse: www.guiadasartes.mg.
domingo, 13 de julho de 2014
O Crítico Pós-dramático: um alfandegário sem fronteiras
Trechos do artigo de
Sérgio Salvia Coelho[1]
In: O Pós-Dramático.
Org. Sílvia Fernandes e
Jacob Guinsburg.
São Paulo: Perspectiva,
2008.
(Debates, 314)
O teatro mudou. Ainda há espaço para a crítica? A crítica que
se baseia na análise prévia de um texto dramático completo, narrativa com
começo, meio e fim, para verificar se este está sendo bem servido pelo
encenador, parece hoje – no advento do teatro pós-dramático, segundo o conceito
de Hans Thies Lehmann – tão anacrônica quanto o velho ponto, ou como um
alfandegário sem fronteiras.
A proliferação de fórmulas, desde a tradição de ruptura dos
fins do século XIX, fez com que o encenador, que já usurpara o poder do autor,
passasse a exercer também a função de crítico. Tornou-se um diretor, quase um
Duce, ditando as próprias leis e atraindo os risos sobre o antigo déspota, que brada perplexo: “não é assim que se
monta Shakespeare!” Ou, ainda, mais patético: “Afinal, qual é o texto deste
espetáculo?”
Antes que se condene aqui o crítico, a ser um comentarista de
futebol em um jogo de rugby, seria prudente reivindicar para ele outras funções
além de ser um legislador arrogante ou, saída indigna, um divulgador submisso.
Como um suicida, segundos antes do pulo, o crítico aqui vai tentar evocar em
flashes rápidos momentos relevantes da sua função, na secreta esperança de
encontrar uma boa razão para sua sobrevivência.
Livre do texto prévio e da estreita caixa do teatro italiano,
o teatro se expõe em esboço, com as costuras à mostra, no happening, na performance, na troca antropológica, na síntese de
culturas e formas: Grotovski, Brook, Barba, teatro-dança, teatro-circo, teatro
paisagem de formas abstratas e abertas à interpretação do público.
Isto quer dizer que cada um na plateia se tornou um crítico?
A responsabilidade do sentido compartilhada com o público tirou do artista a
necessidade de ser avaliado oficialmente por uma inteligência superior, que
deve se desdobrar para entender a obra melhor que o próprio criador?
Não tão rápido. A vítima, sem dúvida, foi o pedestal, a
arrogância do crítico que ainda se ilude em querer apontar o certo e o errado.
Mas o olhar externo, que tanto justificou a permanência da função do diretor em
relação à imersão dos atores, ainda é necessário. Ao crítico, é devida a
humildade de procurar pesquisar em que se baseia cada criador, quais os
parâmetros perseguidos, para poder se propor a ser um interlocutor. Só assim se
habilita ao diálogo: “pelo que eu vi, você fez isso, como já foi feito parecido
antes de você, mas o resultado foi mesmo o que você buscava?”
Esse ideal de “crítica cúmplice”, para retomar o título do
livro de Ana Bernstein, tem o seu representante máximo em Décio de Almeida
Prado, que nos anos 1950 e 60 compartilhou a responsabilidade de criar o
moderno teatro brasileiro como Teatro Brasileiro de Comédia e o que daí
derivou. Tinha a vantagem de ter parâmetros claros a serem seguidos: o teatro
francês, sobretudo o preconizado por Louis Jouvet; o moderno teatro americano
(e foram suas aulas na escola de Arte Dramática sobre o tema que deram
embasamento para José Renato Pécora idealizar o Teatro de Arena); o teatro
italiano, trazido pelos jovens encenadores do TBC. Anos de inovações
vertiginosas no teatro brasileiro, no campo da encenação, mas que ainda
pressupunham um texto pré-existente e uma separação, mesmo que cada vez menor,
entre palco e plateia.
Antes de reservar um sorriso indulgente ao crítico, que
estaria ultrapassado pelas novas linguagens, é preciso ponderar o que significa
um endosso pleno a essa proposta propriamente pós-dramática, que é ruptura do
distanciamento contemplativo, no qual a razão filtra a emoção para melhor
atribuir-lhe um sentido. Primeiro, porque Décio assume humildemente o seu modo
de ser: “só posso escrever da maneira como sou”. Cobrar do crítico que endosse
o entusiasmo do criador é cair em arrogância equivalente a de querer que o
criador acate sem discutir a opinião teórica do crítico, e é preciso lembrar
então que a multiplicidade de pontos de vista é um valor maior da “obra aberta”
do teatro contemporâneo.
Depois, porque tirar do crítico a função de olhar externo, ou
mais propriamente estrangeiro, é negar a médio prazo qualquer pensamento
crítico sobre a obra que se faz, a não ser que o próprio artista usurpe a
função e faça a sua crítica nos jornais. O fato de que nas últimas décadas a
cobertura nos jornais das peças de teatro tenha se dividido em duas funções, -
a do jornalista que faz a matéria prévia, em princípio tendo como função
endossar e divulgar os pontos de vista dos artistas envolvidos; e do crítico
que vem após a estreia testemunhar e avaliar o que viu – poderia ter trazido
maior compreensão para a necessidade de uma avaliação distanciada.
Infelizmente, na prática, a classe teatral, que nem sempre faz a diferença
entre as funções, simpatiza bem mais com o “bom tira” jornalista, guardando o
escárnio para o “mau tira” que mantém suas reservas.
É indispensável cobrar objetividade e imparcialidade do
jornalista, pois, trabalhando na divulgação da obra, informando o público sobre
as intenções dos artistas, não pode deixar transparecer sua opinião pessoal.
Pelo contrário, opinião pessoal é a matéria prima do crítico, que deve vende-la
através de um esforço argumentativo como
qual o leitor, mesmo antes de ver a peça, pode concordar ou não. A
crítica, transmitindo assim uma opinião pessoal, passa a ser por sua vez uma
obra de arte, passível de ser criticada, mas não de ser desautorizada por falta
de endosso. O crítico não é um jornalista, mas faz parte da classe teatral como
qualquer outro técnico criador.
O que confunde às vezes leitores e críticos é que há, sem
dúvida, uma parte de crítica que deve ser objetiva: a descrição do espetáculo,
a ficha técnica, os objetivos declarados a partir dos quais a opinião é
estruturada. Nenhum crítico tem o direito, por exemplo, de dizer: “fulano não é
ator”, já que essa é uma opinião pessoal passada como informação absoluta, e
que, em última análise, é falsa, já que fulano está diante de uma plateia
representando. Porém, quando o crítico diz “o ator fulano falha neste aspecto”,
não está insultando pessoalmente de fulano, já que sua opinião técnica pode ser
sempre avaliada pelo leitor.
A pluralidade de técnicas e objetivos, não raro desenvolvida
pelos próprios participantes do espetáculo, nesses tempos pós-dramáticos, nos
quais nenhuma regra é absoluta e nenhuma fronteira é clara, obriga o crítico a
estar cada vez mais informado, e cada vez mais atento para não confundir
preferencias pessoais e avaliações objetivas de pertinência e bom fundamento
dessas propostas. Isto não quer dizer que o gosto do crítico deva ser
escamoteado, sob pena da crítica se tornar morna ou hipócrita.
O mestre da diplomacia nesses tempos confusos talvez seja Yan
Michalski. Para quem nunca ouviu falar de Yan Michalski, bastaria este
parágrafo, pinçado de uma entre 3.598 críticas teatrais que escreveu entre 1963
3 1984 no Jornal do Brasil, para dar
prova de seu rigor e de sua imparcialidade. Trata-se, no caso, de uma crítica
de O senhor Puntila, de Brecht,
encenada por Flávio Rangel em 1966: “Podemos discordar, como de fato
discordamos, deste enfoque adotado pelo encenador, mas não podemos negar o bom
rendimento por ele alcançado, dentro da empostação pretendida”.
Por “empostação pretendida”, ele quer dizer as escolhas
estéticas do encenador, revelando que leva em consideração não só o seu
projeto, o que depende de um acompanhamento do processo da montagem e da
trajetória de sua carreira, como também que possui um amplo conhecimento dos
parâmetros possíveis de serem usados, ou seja, que domina a história do teatro.
[...]
Por fim, ou melhor, de início, sem ceder aos velhos chavões
contra o crítico “artista frustrado”, que dirige no lugar do diretor, ou do que
se mantém falsamente distanciado, faz valer sua formação de ator e diretor para
discordar enquanto artista do que viu. Em suma, o que diz é: eu não faria
assim, mas funciona. Deixando claro seu gosto pessoal, por outro lado, garante
a objetividade de sua apreciação.
[...]
Está cada vez mais difícil para o crítico manter essa
qualidade de texto, e essa cumplicidade com o criador, com que ambos os
críticos citados, Décio de Almeida Prado e Yan Michalski, registraram e
incentivaram o teatro nacional. No entanto, é preciso reconhecer que o grande
ruído nessa comunicação não é o ego desmedido de ambos os lados, mas a pressão
de uma “sociedade do espetáculo” que transforma cada peça em bem de consumo,
dentro de um mercado altamente competitivo. O crítico passa a ser assim um
avaliador, um provador que indica aos consumidores quantas estrelas merece cada
criação única e pouco comparável, à outra que disputa um espaço cada vez mais
reduzido nos jornais. Ao criticado não ofende tanto a avaliação equivocada quanto
o nome grafado errado, e se anseia pela crítica na convicção que mesmo uma
crítica destrutiva é mais produtiva, isto é, mais capaz de atrair público, do
que a indiferença da mídia.
A multiplicação da mídia, com a internet reproduzindo
indicações e resenhas, não seria então uma ameaça, mas uma vazão para essa
necessidade cruel de um lugar ao sol. Uma peça sempre pode ser recomendada pelo
público leigo que “gosta”, sem maiores explicações, em seu bom senso
aristofânico, e o frescor da opinião espontânea compensa o rigor da opinião
embasada, sobretudo se a primeira for positiva, e a segunda não.
A multiplicidade de gostos leva à multiplicidade de teorias e
a função teórica do crítico pode, também, por sua vez, ser domesticada na
figura do dramaturgista que é, neste caso, um teórico consultado para dar aval
logo na construção do espetáculo. Um grupo que trabalhe segundo a cartilha
épica pode sempre se fortalecer na Teoria
do Drama Moderno de Peter Szondi ou no parecer de Iná Camargo Costa, para a
convicção que qualquer avaliação negativa do resultado provenha do
reacionarismo de um crítico ultrapassado.
Cercado por ambos os lados, visto ora como um acadêmico que
se recusa a confessar que se diverte em uma comédia comercial, ora como um
despreparado a quem falta a iluminação conquistada pelos artistas, é forte a
tendência à omissão do crítico que se rende ao endosso de coluna social ou se
refugia nas revistas especializadas. Porém, a classe artística demora a
perceber é que quem se fortalece com a ausência de um distanciamento crítico é
justamente a indústria pseudocultural de eventos mercadológicos, que instituem cada vez mais a fama como um fim
em si, e não um meio ou um prêmio. Primeiro, o candidato a artista quer se
tornar famoso e depois decide como vai exercer essa fama, enquanto cantor,
artista de novela e – por que não? – de teatro.
O jornalismo cultural, por sua vez, pressionado pela
decadência do mercado da mídia impressa tem pouca energia para ir contra a maré
do marketing. Primeiro, vem a publicidade
paga, depois, a divulgação do que está vendendo bem e, por fim, se sobrar
espaço, o pensamento crítico, com a dignidade dos júris vilões caricatos dos
programas de auditório.
O que resta ao crítico? Não pode abrir mão da análise, sob
pena de não ter mais argumentos contra ou a favor do que testemunhou. Não pode
se contentar a ser mero indicador da tendência da moda: não cabe a ele dizer se
se deve ou não gostar de determinado espetáculo, mas que sentido pode vir a ter
esse espetáculo no contexto social e político em que é feito.
Tragado pelo redemoinho da sedução pelo endosso, está como o
herói de Uma Descida no Maelstrom de
Edgar Alan Poe. O que, dos métodos que aprendeu na academia, pode salvar nosso
herói na prática? Não lhe serve a dedução (“afinal, qual é o texto deste
espetáculo?”), já que isso seria equivalente a catalogar sistematicamente cada
espetáculo por meio de uma lista prévia
de possibilidades e, por isso, vista como morta por aqueles que se esforçam em
criar o novo. Não cabe a indução, que seria obrigar o artista a se encaixar em
uma tendência da moda: “não é assim que se monta Shakespeare!”.
Resta o processo menos conhecido de abdução, segundo o qual
parte-se da observação com olhos livres do que se testemunha, para em seguida
distanciar-se pelo reconhecimento de alguns princípios estudados em teoria, e
que poderiam fornecer um sentido e uma previsão para o movimento aparentemente
aleatório dos destroços que rodam no ralo do Maelstrom. Assim, nessa constante
ida e vinda entre teoria e prática, escolhendo a qual destroço se agarrar, o
crítico evita ser engolido pela emoção ou irritação do público comum, sem
perder a volúpia de se emocionar com a experiência.
Assim, muito além do gosto pessoal, mas sem regras
definitivas para sua avaliação, humilhado pelos editores, que lhe negam espaço
e pelos criticados, que lhe cobram o espaço negado, o crítico de teatro, este
pobre alfandegário sem fronteiras, estará sempre pronto a se maravilhar.
[1] Mestre em Dramaturgia pela Escola de Comunicação e
Artes / USP. Professor de roteiro (Faculdade Anhembi-Morumbi) e Interpretação
do Texto Teatral (Escola Célia Helena/SP). Dramaturgo, diretor e crítico de
Teatro (Folha de São Paulo- 2001/2008).
Assinar:
Postagens (Atom)