Cia. Elevador de Teatro Panorâmico (São Paulo/SP)
Direção: Marcelo Lazzaratto
Assistente de Direção: Thomaz Kardos
Texto: Cássio Pires
A partir de “Ifigênia em Áulis”, de Eurípedes
Elenco: Carolina Fabri, Daniela Alves, Gabriel Miziara, Manfrini
Fabretti, Maurício Schneider, Pedro Haddad, Rodrigo Spina, Sofia Botelho e
Wallyson Mota.
Belo Horizonte/MG
2013
A
Cia. Elevador de Teatro Panorâmico é “um núcleo permanente de investigação em
linguagem teatral”, segundo o programa de seu espetáculo. Completa 13 anos de
existência em 2013. Procura em seu trabalho de pesquisa e criação “dialogar
diretamente com o homem contemporâneo”, também segundo suas próprias palavras.
Mantém um teatro, o Espaço Elevador, em São Paulo, onde desenvolve programação
artística e formativa na área de Artes Cênicas.
“Ifigênia” é o resultado de uma pesquisa
prática de atuação e encenação, motivada pela imagem do “mar e suas ondas”,
segundo o diretor, também no programa do espetáculo. “O mar como metáfora do
todo, do arquetípico, do coletivo. A onda como metáfora da parte, da
subjetividade, do indivíduo”. Esta imagem-mote-força motriz foi desenvolvida
por meio da pesquisa do diretor e do grupo, denominada “Campo de visão”.
Trata-se de uma metodologia que envolve
o treinamento para o ator e uma poética para a elaboração de espetáculos. Está
sistematizada no livro “Campo de Visão. Exercício e Linguagem Cênica”, de
Marcelo Lazzaratto, Editora Associação e Arte, SP, 2011.
Campo:
um contexto de relações que se estruturam e objetivam na forma concreta de
interações. E como uma rede, aproxima noções e elementos, tempos,
preenchimentos e vácuos. Cada um dos instantes é uma relevância, e a imanência
desloca os sentidos, para capta-los. Em “Ifigênia”
o campo molhado do mar subleva o poema de nossas almas em dúvida, seja porque a
escolha do pai por ser fiel ao ser rei, nos coloca em cheque. Seja porque a
escolha da filha por ser cidadã, nos ameaça os pensamentos modernos. O campo em
que se move este “Ifigênia” encorpa
uma noção de teatro denso, ritual e extensivo. Podemos deslizar o olhar e ser
encharcados de visões delicadas de movimento, ou de cores, ou de luz, ou de
vazios. Podemos apurar os ouvidos e enxergar o mundo em que estamos e que se
parece com outros já mortos. Podemos investigar as reações do coro, e nos
propormos a nos perguntar o que faríamos diante de tamanha decisão.
Na
tragédia de Eurípedes, “Ifigênia
em Áulis” de 408a.C., vemos um pai atrair sua filha para a morte,
prometendo-lhe uma festa de noivado. Atrai um suposto noivo que pode interessar
à sua filha como marido, um guerreiro reconhecido na comunidade. Faz sua esposa
acreditar em sua intenção benevolente e amorosa. À chegada da filha, anuncia o
verdadeiro intento da viagem: sacrifica-la à deusa Palas Atena para alcançar a vitória na
guerra, e, assim, salvar seu reino, seus habitantes, suas vidas. A filha e a
esposa, tomadas de angústia e horror, o rejeitam. Em suas lamentações encontram
a motivação de princesa e de rainha, e refletem sobre o sacrifício para salvar
seu povo. Se apegam à hierarquia, aceitam a morte e a ausência como parte de
seus papéis de líderes, materiais e espirituais, de seu povo. No momento do
sacrifício, uma corsa rodeia o corpo inerte da princesa, e ao pai lhe parece
que a deusa lhe deu um novo corpo para seguir vivendo. A guerra é vencida.
A
visão da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico coteja a tragédia helênica com a tragédia
pós-moderna: o que é o público? O que é o privado? Quem tem direito de poder? A
quem cabem as escolhas ? Um belo espetáculo, de teatralidade viva e pungente,
delicado, intenso. Toma o tempo da reflexão e carrega mente e coração por um
instante de suspensão coletivo. Nada a temer, é teatro não serão mortas as
atrizes princesas. Não seremos cúmplices de um sacrifício sangrento. Sim,
seremos ungidos pelo suor daqueles corpos concentrados e entusiasmados com
nossa presença, diante dos deuses. Que nos narram o desfecho daquela catártica
circunstância. Ouvimos e sentimos cada palavra, cada melodia, cada intervalo que
nos guia pelo universo trágico. E nos mantemos no tempo pós-moderno, podendo
vê-lo e domina-lo por alguns minutos. Fascinante!
O
movimento desenhado que nos ampara no palco, a nós que nos mantemos sentados e
fixados na mesma posição silenciosa, é misterioso... Ao lermos o programa do
espetáculo, podemos entrever o princípio que o rege: “os participantes só podem
movimentar-se quando algum movimento gerado por qualquer ator estiver ou entrar
em seu campo de visão”. Perfeito! A cada ação se correspondem reações em
intensidade e quantidade inesperadas, e a nossa afetividade vai sendo
instaurada e alimentada no decorrer das imagens e atmosferas que surgem como
por encanto. Os atores se colocam em cena com respeito e cuidado, observam-se
com atenção e desvelo, buscam um ritmo que alimente a magia. A música acentua
ligações, promove impactos, faz imergir e escapar do enredado que se forma
entre palco e plateia. Bonito de ver, de observar, de captar, de lembrar.
“Ifigênia” traz a marca de uma companhia,
de dedicação, perspicácia, poesia, de teatralidade. Sua simplicidade, harmonia
e intensidade são deliciosamente estimulantes. Que venham sempre ventos, céus e
mares a serem assim navegados, evoé! E obrigada Pierre Bourdieu, por me
inspirar para escrever este texto.