Rui Moreira Cia. de Danças.
Bailarinos Rui Moreira e Rodrigo Peres.
“O encontro de dois andarilhos que dançam”
Ao sermos tomados pela escuridão da sala de apresentação,
sente-se um silêncio delicado, e instigante porque já passamos por uma figura
mascarada na entrada, que não deu pistas de suas intenções. A luz que emerge da
escuridão vem sob a forma de letras, algumas discerníveis outras não. As
sonoridades se misturam... respiração dos espectadores, falas no som mecânico
da sala, passos do dançarino no palco. Esta oferta de sensações variadas
preenche o pensamento e evita a visão do seu movimento.
O dançarino que tentamos ver se esmera num conjunto de
movimentos coordenados, codificados e matematicamente correlacionados, mas
estamos incertos sobre para o que olhar. Se lemos os textos curtos e rápidos
que desfilam, não o vemos dançar, e ele até nos impede de ver cada palavra. Se
encaramos o texto como luz para seu movimento, não o vemos bem, porque esta é
uma luz insuficiente, e perdemos a presença do texto. O primeiro momento faz
muitos barulhos, mas não nos convida a fazer o nosso próprio, porque nos vemos
assoberbados, talvez por isso esperamos ansiosos que ele termine.
Segue-se uma luz clara
e teatral, na qual uma linda coreografia de uma das danças mais curiosas da
contemporaneidade, a break dance, ou
a dança de rua, nos absorve por completo. A Break Dance é uma das expressões fundadoras do modo cultural conhecido como Hip Hop. Este movimento de ascendência
afrodescendente e latina, foi nascido em Nova York/ EUA. Além da Dança de
Rua, o Hip Hop tem como expressões fundadoras o rap, o Djing, e o
Grafite. As primeiras manifestações da Dança de Rua datam dos anos 1929; contam
que os porto-riquenhos e afrodescendentes americanos residentes em NY estavam
desempregados e descontentes com a guerra do Vietnam, e nesta época criaram a
“festa de rua”, break partie, para se
reunir, para protestar e para se divertirem sem gastar o tostão de que não
dispunham. Os movimentos, segundo alguns b-boys,
ou break-boys, os dançarinos, se
inspiraram em artes marciais, como o Kung Fu, mas muito fortemente também na soul music, sendo que a partir de 1980
os movimentos acrobáticos da ginástica passaram a ser muito valorizados. As mulheres que dançam a
dança de rua são as b-girls. Os
gestos são densos, bruscos e exigentes de equilíbrio e força. As rodas de dança
de rua tem caráter competitivo, e ganha quem é mais criativo e inovador nos
movimentos, e aqueles que os executam com virtuosismo.
Vemos fazer um forte barulho o dançarino Rodrigo Peres
enquanto dança a sua Dança de Rua no palco. Desliza pelo espaço desenvolvendo
todos os passos típicos da Dança de Rua com maestria. Compõe sua performance
com sonoridades, músicas e silêncios. Vemos seu corpo se desdobrar para manter
a energia, e esta chega até nós como um desafio do humano contra a gravidade e
a habilidade de utilizar o corpo dentro de um código claro de movimentos.
Provavelmente por falta de hábito, não nos manifestamos na sala de
apresentação, como o público o faz nas rodas na rua, aplaudindo a performance
ao seu final, mas nos mantemos concentrados na perícia e na execução de
Rodrigo, como se intuitivamente soubéssemos da necessidade de concentração para
a execução de sua coreografia.
No tempo terceiro, é um palhaço de Folia de Reis que nos
procura. A Folia, muito conhecida e mantida como tradição cultural em Minas
Gerais e em todo o país, é de origem lusitana, terra onde era um divertimento
popular. A história conta que sua chegada ao Brasil se deu por volta do século
XVIII e que aqui assumiu um caráter religioso, sendo realizada entre o Natal, em dezembro, e
o Dia de Reis, em janeiro. É constituída por uma longa procissão que visita as
casas de uma localidade, solicita uma oferenda, como uma refeição ou um simples
café, e desenvolve uma cantoria acompanhada de danças para homenagear o dono da
casa que a acolheu. O Palhaço na Folia representa o cuidador do Menino Jesus,
que distrai os soldados com suas peripécias. Usa máscara para não ser
reconhecido, e também porque a máscara é um amuleto que espanta o mal.
Faz um forte barulho o dançarino palhaço folião Rui Moreira
enquanto brinca no palco de desconcertar a nossa percepção. Se utiliza de suas
habilidade para nos espantar, nos deixar curiosos e nos fazer rir. Canta e
sapateia, como se a ele coubesse, literalmente, nos distrair. Sentimos uma
sensação quase aflitiva para saber se se trata de uma coreografia estudada ou de
uma improvisação inspirada. Nos vê por trás da máscara e desafia nossa audição
com frases jocosas, incompreensíveis e atordoantes. A palhaçada santa, ou a
santa palhaçada, como for do agrado de cada um, preenche de sentimentos
infantis e memórias de brincadeiras o espaço entre nós, já não tão mais público
e um pouco mais íntimos e absorvidos pela atmosfera de coletivo, e aquela louca
figura inexplicável e surpreendente.
Muitas imagens fotográficas, videográficas e vérbico-visuais
permeiam todas estas cenas. Estas imagens aparecem num misto de beleza e
confusão. Interrompem a dança, nos fazendo esfriar na brincadeira. E, muitas
vezes, não são para serem vistos, já que passam pela parede onde são projetadas
em formatos e velocidade que não nos permitem percebe-las. Talvez, se possível, se devesse pensa-los com terceiro dançarino, que traz movimentos de olhos e memórias, que
inspira movimentos internos em nós, os espectadores, e que dialogue com os
dançarinos de carne que nos encantam. A utilização do vídeo na cena pode, sim,
ser um projeto de cenografia, e ilustrar silêncios e vazios, ou moldar uma área
para o jogo, ou iluminar uma ação. Mas no caso de Faça Algum Barulho poderia enfrentar a diferença de textura das
imagens projetadas e ao vivo, fortalecendo as figuras. Por exemplo, a Folia de
Reis é muito presente, são muitas as fotos e vozes que a trazem à nossa presença, como a
nos informar sobre aquele universo, que para muitos, certamente, é distante e
misterioso. Já a Dança de Rua está ausente, e não compõe a grade de figuras que
nos são oferecidas. As frases sobre a arte que são projetadas em vários
formatos, não influenciam na visão ou na leitura do movimento, porque não
entram com contato com suas texturas, durações e atmosferas. Longe de imaginar
um projeto de ilustração do movimento por palavras de autores significativos,
seria bom vivenciar uma experiência de interação entre movimento, letra e som.
O último tempo, ou os últimos tempos de convivência com o
barulho de Rodrigo e Rui, pois se desdobram em dois duos, são especialmente
encantatórios. Nas suas diferenças, de tudo!, os corpos dançarinos nos agitam, mostrando a força da
dança em todas as suas possibilidades. A percepção da diferença dos corpos da
dança fortemente codificada para a dança permeada de improvisos, faz ver o
humano por trás da beleza da arte. Não se comparam, mas se medem, se exploram, se
desafiam, se misturam. A qualidade técnica dos dançarinos faz perceber a
intensidade de uma dança contemporânea, quando ela se porta como espaço de
experimentação e revigoramento do movimento humano. Para isto mesmo, penso,
deve servir a técnica: mostrar que quem dança é o corpo de carne, emoção e
pensamento. Que a dança é uma arte da luz que emana dos corpos alegres por
estarem em estado de vida e intensidade.
O duo que é dançado à nossa vista direta, perto de nós e cercado de uma
correria e de movimentos largos e grandiosos, lembra uma luta, lembra uma
valsa, lembra o acasalamento de animais, lembra a marcação de uma fronteira. Mas o que se
realiza, no fundo, é uma iteração: o processo que se repete diversas vezes para
se chegar a um resultado não pré-definido e que a cada vez gera um resultado
parcial que será usado na continuidade deste mesmo processo. Esta noção é de
origem oriental, mais especificamente hinduísta. Como ocidentais cartesianos
não sabemos lidar com esta perspectiva de mundo fragmentado e em processo contínuo de mudança, embora nossa ciência esteja
tentando superar o cálculo como valor único de estabelecimento do pensamento. A iteração faz os dois dançarinos
bailarem de modo transcendente por alguns minutos, nos fazendo superar a
necessidade de significados ou classificações.
Outro duo é dançado por trás da cortina transparente que divide o palco em dois longitudinalmente,
com uma atitude de intervenção das sombras, como a sugerir a presença dos
duplos daquelas figuras. Este não alcança toda a sua potencia... De fora, a sensação
que sentimos é de que o suporte impede a obra, ou noutras palavras, a luz que
deveria ser complementar ao jogo de percepções dos espectadores, não é
percebida tão poeticamente pelos dançarinos, deixando o movimento travado,
incompleto, subserviente. Como a arte é difícil. Cheia de nuances e
complexidades.
Faça algum barulho
merece ser experimentado por todos nós. Porque instiga a nos ver como humanos,
porque estimula a ver a dança como parte de todos os corpos vivos, porque traz
à tona a questão pós-moderna da relação direta entre a cena e a vida. E merece
ampliar seus barulhos para ficar para o futuro, sejam eles os técnicos, os poéticos
e os de ousadia.